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António Guterres ouvia La Traviatta na sua casa situada nas Avenidas Novas quando um jornalista do Público lhe bateu à porta. Queria saber qual era o seu estado de espírito duas horas antes de dar aquele que até então era o passo mais importante da sua carreira: a apresentação da candidatura à sucessão de Jorge Sampaio na liderança.
De jeans e pullover cor de vinho, o quase candidato relaxava ao som de Verdi, o seu compositor favorito, enquanto fazia pequenas alterações ao texto que leria pelas 15h30 na sede do Partido Socialista (PS). Nessa manhã fizera chegar ao Largo do Rato o seu pedido de demissão do Secretariado Nacional, libertando-se para a campanha intensa, sem tréguas, que se aproximava. Passara um mês desde que Jorge Sampaio perdera de forma estrondosa as legislativas contra Cavaco Silva, que obtivera a sua segunda maioria absoluta. Ainda estava o líder do PS a recuperar o fôlego quando, na própria noite eleitoral, Guterres lhe aplicou a estocada fatal: "Estou em estado de choque."
Dez anos antes do "choque"…
Na sequência do congresso de 1981, em que sofreram uma pesada derrota contra Mário Soares, os membros do chamado grupo do ex-secretariado – constituído por destacados militantes socialistas que se tinham destacado pelo apoio, à revelia de Soares, da recandidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República – decidiram começar a sarar as feridas num simpático sótão de um nono andar situado na Avenida dos Bombeiros Voluntários, em Algés. Propriedade de António Guterres, um dos mais debilitados depois do choque com o líder histórico, era um espaço amplo – caberiam lá cerca de 40 pessoas - ao qual se acedia através de uma escada em forma de L. Tinha vários maples, estrados com almofadas, um divã (sim, leu bem…), cadeiras de palhinha, puffs de couro, uma mesa e várias estantes carregadas de livros. Era lá que Guterres lia freneticamente os manuais de História que adorava e ouvia as óperas que o enriqueciam. Juntos – os livros e a música, a que acrescem as viagens – terão sido essenciais para moldar o cidadão do mundo que, durante a caminhada recente para as Nações Unidas, seduziu, entre outros, Boris Johnson, ministro inglês dos Negócios Estrangeiros, ex-mayor de Londres e reconhecido diletante.
Às sessões conspirativas compareciam regularmente Vítor Constâncio e Jorge Sampaio, mas também Luís Filipe Madeira, António Esteves, Gomes Fernandes, Carlos Laje, António Reis, Arons de Carvalho, Sousa Gomes e até Salgado Zenha, um grande amigo de Soares entretanto incompatibilizado com ele, que por vezes adormecia durante as conversas que se arrastavam pela noite dentro.
Com o acumular de reuniões, a oposição a Soares foi ganhando lastro. O grupo aumentou, as ramificações de Guterres, Sampaio e Constâncio foram tomando formas mais concretas no PS profundo. A dada altura, o espaço passou a ser uma passerelle política obrigatória para todos os que tinham ambições políticas no pós-soares. Os participantes chegavam de todo o lado. Guterres era imparável. Para além de ser ele a tratar dos convites – e raramente aceitava um não como resposta – era também um dos mais activos durante os encontros. Em regra, encontravam-se nas vésperas das reuniões da Comissão Nacional. À partida poderia parecer estranho observar pessoas com passados tão diversos a conspirar enquanto comiam os bolinhos que Zizas, a mulher de Guterres, generosamente distribuía pela noite fora. Mas o que os unia era mais forte do que aquilo que os afastava: a luta contra Mário Soares, que dominava o aparelho e os hostilizava abertamente.
No pós-congresso, Soares controlava 11 distritais, contra apenas 5 afectas ao grupo do ex-secretariado. A força de Guterres, Sampaio e Constâncio estava agora concentrada no Parlamento, onde, em 66 deputados, controlavam 38, contra 21 de Soares, quatro da Esquerda Laboral e três neutros. E mesmo esse poderio estava prestes a chegar ao fim. A assinatura da sua morte foi desenhada, como não poderia deixar de ser, pelo próprio Mário Soares, que varreu os críticos das listas de candidatos a deputados às eleições legislativas de 25 de Abril de 1983. Método escolhido: irritar os seus principais rostos. Não sendo politicamente prudente hostilizá-los de forma radical, fê-lo encapotadamente: retirou, por exemplo, Guterres da lista de Castelo Branco, o círculo por onde sempre fora eleito, oferecendo-lhe um humilhante terceiro lugar pelo círculo de Braga. Um convite à debandada, portanto.
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Jorge Sampaio, que funcionava como uma espécie de porta-voz informal do grupo junto da direcção soarista, informou Guterres da decisão durante uma das reuniões no sótão. Numa discussão que se estendeu até às quatro da manhã, os participantes decidiram que ou Soares aceitava que um terço dos candidatos elegíveis fossem provenientes do ex-secretariado ou eram eles que recusavam participar nas listas, provocando sérios danos eleitorais numa disputa que se adivinhava difícil. Quando tomou conhecimento da exigência, Soares não vergou:
- Ah, não aceitam? Então não aceitem e eu nomeio outros!
E nomeou mesmo. Em tempo recorde – apenas dois dias – conseguiu renovar as listas quase de alto a baixo. A travessia no deserto de Sampaio, Constâncio e Guterres estava prestes a começar. Faltava apenas conhecer-se o resultado das eleições. Que seria bem mais agreste do que imaginavam: sem eles Soares não só venceria, como obteria a maior vitória eleitoral de sempre do PS: 36,1% dos votos e 101 deputados. O PSD, liderado por Mota Pinto desde a resignação de Pinto Balsemão, obteve 27,2%. O CDS, com Lucas Pires na liderança, alcançou 12,6%, a APU 18% e a UDP 0,5%. Seguir-se-ia o previsível: Soares e Mota Pinto avançaram para o Bloco Central, formando uma coligação política para governar com estabilidade. O IX Governo Constitucional tomou posse a 9 de Junho de 1983. Estavam lá Soares, Almeida Santos e Jaime Gama. De fora, os grandes derrotados: Constâncio, Sampaio, Guterres, Arons de Carvalho e Salgado Zenha.
O jantar em que Coelho e Guterres se conhecem
Ainda o grupo do ex-secretariado carpia as mágoas provocadas pela hecatombe pós-eleitoral quando Murteira, que ficara com a pasta dos Transportes levou um jovem - um primo seu de Contenças que nomeara seu chefe de gabinete e que se destacava então pela sua invulgar habilidade na negociação com os sindicatos do tumultuoso sector dos Transportes - ao que viria a ser um jantar determinante para a carreira política de duas pessoas: a de Jorge Coelho, o seu familiar, e a de António Guterres. O cenário foi a casa de Carlos Santos Ferreira, amigo de infância de Guterres, futuro presidente da CGD e do BCP e, tal como Guterres, uma enciclopédia com pernas. A química entre Jorge e António foi instantânea – coisas boas estavam para acontecer.
De percalço em percalço, a união PS/PSD foi-se aguentando. Até que Mota Pinto decidiu entrar na enorme galeria de vítimas do génio maquiavélico de Marcelo Rebelo de Sousa. Foi num Conselho Nacional do partido, realizado em Fevereiro de 1985 na cidade do Porto. Fustigado pelas críticas internas, vindas sobretudo de sectores próximos de Francisco Balsemão e da Nova Esperança - a tendência liderada informalmente por Marcelo Rebelo de Sousa, que também incluía nomes como Durão Barroso, José Miguel Júdice, Pedro Santana Lopes ou António Pinto Leite -, Mota Pinto exigiu um voto de confiança, ameaçando bater com a porta em caso contrário. Correu-lhe mal. Santana Lopes aceitou a provocação:
- Quer ir-se embora? Então vá! Talvez fosse bom para o país e para o partido!
Perto da meia-noite, o jovem Rui Gomes da Silva – hoje mais conhecido pelos psicodramas futebolísticos em que se envolveu do que pelos feitos políticos que protagonizou -, devidamente instruído por Marcelo, deu-lhe a estocada final, ao insinuar que Mota Pinto estaria envolvido em esquemas duvidosos na gestão dos dinheiros do partido. Foi a gota de água: o líder acabou mesmo por se afastar, com a intenção de se candidatar no congresso seguinte, exigir uma clarificação e reforçar a sua liderança. Já não foi a tempo, uma vez que a 7 de Maio, a quinze dias do conclave, morreu subitamente na sequência da rotura de um aneurisma. A AD estava prestes a acabar - e com ela as aspirações agregadoras de Soares, que teria de correr sozinho em direcção ao seu grande objectivo: Belém, 1986 – as legislativas que se disputariam entretanto ficariam por conta de Almeida Santos.
Deixar Constâncio queimar em lume brando
Soares sabia que a sua entrada em Belém correspondia à entrega do ouro aos "bandidos" no PS. Constâncio, Sampaio e Guterres, ajudados pelos seus acólitos, não hesitariam em tomar o poder de assalto. Na sequência da estrondosa derrota eleitoral de Almeida Santos, Jaime Gama já dera claras indicações de que avançaria para preencher o vazio deixado pelo líder histórico. Seguramente que não o faria sozinho. Na ordem de prioridades, dentro do grupo do ex-secretariado o nome de Constâncio era o que surgia primeiro, seguido por Sampaio e só depois por Guterres. De parte estava a possibilidade de avançar mais do que um deles. Como sempre acontecia em momentos decisivos, Constâncio hesitou muito antes concorrer. Era vice-governador do Banco de Portugal, socialmente prestigiado, sem particular paciência para jogos de bastidores e com vocação nula para comunicar com as massas. Ou seja: possuía a extraordinária faculdade de reunir todos os condimentos que desaconselhavam o seu avanço.
Convencê-lo não foi fácil. Foram dezenas – centenas - de conversas cruzadas entre o próprio, Sampaio, Guterres e respectivos apoiantes. Tomada finalmente a decisão, faltava o mais fácil: deixar a Guterres, nessa altura já fortemente apoiado por Jorge Coelho, a mobilização da máquina partidária em seu favor. Era ele que controlava o aparelho. Seria ele, por isso, quem escolheria o líder. Em Junho de 1986, o PS elegia, por larga margem, um novo secretário-geral. Soares, que nunca expressou de forma aberta o seu apoio a Jaime Gama, perdera. O ex-secretariado ganhara. Novos tempos à vista.
A primeira decisão de Constâncio foi tudo menos surpreendente: entregar a pasta da organização interna a Guterres. Objectivo expresso: reorganizar o partido, blá blá blá, blá blá blá. Objectivo real: arranjar dinheiro. O PS estava nas lonas, de cofres vazios. Guterres não se encolheu: lançou uma série de iniciativas de angariação de fundos, organizando jantares com militantes, realizando sorteios e campanhas de donativos. Valia quase tudo.
Nessa altura o jovem conspirador pensava no partido, sim, mas também no seu futuro – as suas aspirações eram altas, todos o sabiam. E, sabia ele, dependiam directamente do nível de intimidade que conseguisse criar com o coração do PS. Nunca se poupou a esforços. Um dia chegou mesmo a viajar para Vila Nova de Cerveira para fazer a entrega oficial de um aparelho de vídeo como recompensa à secção do PS local pela angariação de novos membros. O seu manifesto talento para conquistar os camaradas contrastava tristemente com a incapacidade revelada por Vítor Constâncio, cujas hesitações crónicas se tornaram tema de chacota dentro e fora do partido.
Em Abril de 1987, o PRD anunciou a apresentação de uma moção de censura ao Executivo na Assembleia da República. Cavaco estava no poder há cerca de um ano e meio. Constâncio sabia que os seus votos, aliados aos do PCP e aos do PRD, seriam suficientes para o fazer cair. Uma vez mais, hesitava. Ao telefone com Soares, que entretanto ganhara as presidenciais, informou-o de que considerava a moção "uma irresponsabilidade". O Presidente, que estava prestes a deslocar-se ao Brasil em visita de Estado, preveniu-o:
- Quero avisá-lo de que que se encontrar tipos dentro do partido – e vai encontrar muitos – que vão reclamar para que você vote porque querem ir outra vez para o poder, para serem ministros, você não se deixe ir nisso, que há uma coisa que eu lhe garanto: é que não deixo que isto vá para diante; eu estou disposto a dissolver a Assembleia.
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Soares não suportava a ideia de o partido inspirado por Eanes poder ser poder em Portugal. Se dependesse dele, nunca aconteceria – mesmo que para isso o PS tivesse de sofrer. Embarcou para o Brasil convicto de que Constâncio se "portaria bem". Errado. Muitos socialistas, ansiosos por um regresso ao Governo, esforçavam-se por fazer o líder mudar de opinião. À medida que os faxes enviados pelo seu sobrinho e chefe da Casa Civil da Presidência da República, Alfredo Barroso, se amontoavam à sua frente com o registo dos mais recentes desenvolvimentos em Lisboa, Soares começou a hiperventilar: "No Brasil tinha comigo os representantes dos vários partidos, entre eles o socialista João Cravinho, com quem falei. Disse-lhe que estava ao corrente das tentações e hesitações que corriam no PS e, uma vez que a análise dele coincidia com a minha, pedi-lhe que telefonasse para Lisboa, tentando acalmar as ambições governamentais dos socialistas mais exaltados", revelaria posteriormente em entrevista à jornalista Maria João Avillez. Não foi a tempo: "O Governo caiu. E eu fiquei – como se diz – ‘com a batata quente’ nas mãos (…) Vítor Constâncio convencera-se (não sei porquê) de que eu acabaria por concordar com qualquer solução governativa que me fosse apresentada, que nunca a recusaria e, como tal, que não me atreveria a dissolver o Parlamento, apesar dos sinais que lhe tinha dado em sentido contrário."
O PS esforçou-se até ao limite para convencer Soares a aceitar uma solução de Governo com origem numa aliança com o PRD alicerçada na Assembleia da República. Jorge Coelho, sempre secundando Guterres, que esteve no centro de todas as conspirações, foi um dos mais activos. Mas Soares revelava-se um muro inquebrável. Resultado final: dissolução do Parlamento, eleições legislativas, derrota humilhante do PS (22,3% dos votos), desaparecimento do PRD (5%) e primeira maioria absoluta do PSD (50,2%). Na ressaca da derrota, Constâncio dir-lhe-ia:
- Vamos ter Cavaco por mais oito anos.
Soares riu-se da sua ingenuidade. E devolveu-lhe uma pergunta assumidamente retórica:
- Você acha que a história é tão lenta quanto isso?
Pela primeira vez na vida Constâncio ganhara a Soares em matéria de faro político. Mas a sua liderança estava condenada – ele sabia-o; Sampaio e Guterres também. Restava saber quando ocorreria o golpe final.
Frustrando o desejo de muitos no partido, Constâncio não se demitiu na noite eleitoral. Escolheu resistir. Ingénuo, uma vez mais. Fragilizado internamente, distribuiu cargos, responsabilidades e protagonismos precisamente pelos homens que o viriam a fazer cair, com António Guterres à cabeça. E à medida que Guterres e Sampaio iam inchando, Constâncio esvaziava cada vez mais, num ritmo frenético que o conduziria em breve à asfixia política.
Um dos momentos mais embaraçosos da sua liderança aconteceu logo em 5 de Novembro de 1987, dia em que a Assembleia da República elegia os representantes dos partidos no Conselho de Estado. Das três listas apresentadas (uma do PSD, outra do PS e a terceira do PCP), a do PSD foi a mais votada (135 votos). Mas ao contrário do que se esperava a do PS não surgiu logo a seguir – o PCP, apesar de possuir um menor número de deputados, tinha obtido mais dois votos do que o PS. Explicação: cerca de uma dezena de deputados socialistas terão votado em Álvaro Cunhal em detrimento do seu líder. Uma humilhação que precipitou a necessidade de convocação um congresso antecipado para relegitimar a liderança. Os críticos haveriam de se chegar à frente, pensava Constâncio - e nessa altura seriam esmagados pelo peso das suas convicções. Uma vez mais, estava a ser naif. O conclave, realizado a 19,20 e 21 de Fevereiro de 1988, foi um passeio triunfal do líder, acabando reeleito com 89% dos votos. A vitória foi robusta, mas agridoce: era fácil perceber que o PS nunca o amaria – Constâncio não era um deles. Um congressista, ex-estivador, resumiu desta maneira, a partir da tribuna, o sentimento generalizado: "O nosso secretário-geral é um grande técnico, talvez o melhor técnico do país. Só tem um erro, para mim. É não ser aldrabão – se fosse um aldrabão era um grande político."
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Coelho, Guterres e companhia preferiram fritar o líder em lume brando. E para que isso acontecesse o processo de escolha de um candidato à Câmara Municipal de Lisboa para as autárquicas que se seguiriam seria fulcral. O partido ainda não tinha ninguém e Constâncio, que precisava de vitórias, começava a agonizar na imensidão da sua solidão. Todos os "barões" do PS lhe tinham dito que não: Jorge Sampaio, António Barreto, Jaime Gama, João Cravinho e António Guterres fecharam insistentemente a porta a uma aventura autárquica, deixando-o numa posição altamente desconfortável – não ter um candidato de primeira linha em Lisboa não era opção. O único que se tinha oferecido para avançar fora João Soares, mas Constâncio não estava disposto a aceitar uma candidatura que considerava condenada apenas para agradar a Mário Soares.
Numa reunião tensa realizada em sua casa em que estiveram presentes figuras como Guterres, Cravinho, Sampaio, António Costa, Nuno Brederode Santos e Carlos Santos Ferreira, Constâncio encostou Guterres às cordas. Um por um, a generalidade dos participantes foi dando a sua opinião sobre as hipóteses do PS. Era praticamente unânime a convicção de que devia ser ele o candidato. Sem efeito: no guião da carreira política que desenhara para si, António Guterres não previra a presidência de uma autarquia. Mais do que isso: o seu interesse em salvar a pele de Constâncio não era especialmente robusto.
Impotente para continuar, a 27 de Outubro de 1988 Constâncio atirou a toalha ao chão, anunciando a sua demissão de secretário-geral. Na hora da despedida, não poupou ninguém: o PS e os seus dirigentes, que acusou de falta de solidariedade; Mário Soares, que alegadamente conspirava nas suas costas; e os jornalistas, que sublinhavam profusamente as suas dificuldades. Estava oficialmente sem ar.
O dia em que Guterres fica "de calças na mão"
Ainda Constâncio não tinha terminado a comunicação da desistência ao secretariado nacional e a corrida à liderança já tinha tomado conta do PS. Na linha de partida, três nomes: Sampaio, Guterres e Gama. Sem surpresas. Era óbvio que um dos dois primeiros teria de adiar a concretização das suas ambições, sob pena de dividirem o eleitorado, oferecendo a liderança de bandeja ao "peixe de águas profundas", como era conhecido Jaime Gama no interior do PS. Antes que Guterres tivesse tempo de contar as suas espingardas no aparelho, Sampaio disparou com a sua candidatura. Guterres ficou de calças na mão. Melhor: de calças na mão ao quadrado, porque para além de ter de lidar com a surpresa montada por Sampaio ainda se viu obrigado a assumir a defesa do seu rival junto do aparelho.
Com Guterres a seu lado, Sampaio conseguiu o previsível: em Janeiro de 1989 foi eleito secretário-geral do PS. E, ironia das ironias, seria precisamente a autarquia lisboeta que o obrigaria, como obrigara Constâncio, a fazer uma prova de vida. Tal como o seu antecessor, Sampaio fora incapaz de convencer um nome minimamente capaz de vencer Marcelo Rebelo de Sousa, o mais do que provável candidato do PSD, que nas sondagens batia todos os protocandidatos até então apontados para o PS. Mas se o seu antecessor atirara a toalha ao chão, Sampaio não o faria. Tentou Nuno Portas. Nada. Passou a Gonçalo Ribeiro Telles. Zero. Cravinho. Nem pensar. Gama. Não. Guterres. Era o que faltava. Estava perdido, não sabia o que fazer – e a solução estava, no entanto, desde sempre à sua frente. "Fechei-me em casa durante um dia inteiro, completamente enrascado, e decidi em frente ao espelho, depois de receber o António Costa: sou eu! Percebi que não havia outra saída", revelou, muitos anos depois, na sua biografia oficial, da autoria do jornalista do Expresso José Pedro Castanheira.
Quando soube que seria ele o candidato do PS, António Pinto Leite, líder da distrital de Lisboa do PSD, terá, segundo o jornalista Vítor Matos relata na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa, ligado ao então candidato a meio da noite:
- Bolas, Marcelo, saiu-nos um touro de 600 quilos para a praça!...
Sampaio jogava tudo naquelas eleições. Os efeitos de uma derrota eram imprevisíveis. Se fosse retumbante, a sua carreira poderia ficar em cacos – abrir-se-ia imediatamente um processo de sucessão no partido. E caso isso se verificasse Guterres, o mais que provável adversário numa corrida interna, precisava do seu mais fiel escudeiro a seu lado. Ligou a Jorge Coelho, então membro do governo de Macau:
- Jorge, preciso de ti. Se pudesses vir, eras uma grande ajuda.
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O seu amigo regressou a Lisboa a tempo de participar na coordenação da campanha de Jorge Sampaio, pronto para o que desse e viesse. Até muito tarde, Marcelo esteve convencido de que a sua heterodoxia seria suficiente para vencer. Que lhe bastava um mergulho no Tejo e um dia a conduzir um táxi para superar o seu défice de notoriedade (surpresa: naqueles tempos Marcelo tinha um problema de popularidade…). A convicção começou a esvair-se sobretudo a partir do momento em que foi trucidado por Sampaio num debate televisivo realizado na RTP (pois: nos anos 90 Marcelo não era especialmente brilhante em televisão…). Quando se esperava que o brilho de Marcelo ofuscasse o adversário aconteceu exactamente o contrário: o socialista, político preparado e experiente, passou o tempo a minar a sua credibilidade, ridicularizando a sua postura e as suas propostas, com particular ênfase numa das mais originais: a de permitir que aos fins-de-semana os corredores de Bus fossem utilizados por veículos normais, desde que não excedessem quatro passageiros. "Mas quem é que vai controlar as pessoas que vão nos carros? Isso era um pandemónio!", atacou Sampaio. Marcelo estava de joelhos na arena. E de rastos ficou no dia da eleição: Sampaio obteve 49% dos votos contra 42% da aliança de direita.
Na segunda-feira a seguir à debacle eleitoral, António Guterres, amigo de infância de Marcelo, convidou-o para jantar em sua casa. De alguma forma, também ele fora derrotado – a sua vez ainda não tinha chegado dentro do PS. A sua e a de Jorge Coelho, que se preparava para voltar a emigrar, depois de pouco mais de um mês em Portugal. Recebera um telefonema de Carlos Melancia com um convite irrecusável: ser membro do Governo com a pasta deixada vaga por Murteira Nabo, que entretanto assumira a dos Assuntos Económicos. Naquele instante, Coelho não era fundamental para Guterres no continente. Podia voltar ao El Dorado, já com outro estatuto, na certeza, porém, de que a sua caminhada junto a Guterres ainda estava a começar. Só tinham de ter paciência e esperar pelo primeiro deslize de Sampaio – e haveria melhor destino para relaxar do que o Oriente longínquo?
Não se pode dizer que dois amigos tenham tido muito tempo para relaxar. No final de 1991, Sampaio estendeu uma enorme passadeira vermelha a Cavaco Silva para que este atingisse a sua segunda maioria absoluta nas legislativas. Dessa vez ninguém deixaria Guterres de calças na mão. Estava de tal modo escaldado que ainda estava o líder do PS a recuperar o fôlego quando, na própria noite eleitoral, Guterres lhe aplicou friamente a estocada fatal, deixando bem claro que havia um PS até àquela noite e outro a partir do dia seguinte - o pontapé de saída para o desafio que se seguiria estava dado.
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No discurso de apresentação da sua candidatura, o aspirante sublinhou a sua ambição em ver o PS "de novo como grande partido popular e vencedor". E quem melhor que ele para o conseguir? Assumindo-se co-responsável pela estratégia que conduziu ao desaire eleitoral de 6 de Outubro, não se coibiu, porém, de criticar o funcionamento interno do partido. Sob o olhar atento de Jorge Coelho, José Sócrates, Edite Estrela, Arons de Carvalho, Laurentino Dias, Rosado Fernandes, Edmundo Pedro e alguns militantes anónimos, enumerou as três bases da mudança a que se propunha: organizar, mudar métodos de trabalho e falar claro. Propôs uma "descentralização" contra o caminho "de centralização das decisões" e do relativo "abandono das suas bases", atacou as "lógicas de grupo" e deixou um recado a Jorge Sampaio: "Convenhamos que, na última campanha eleitoral, muito poucos perceberam exactamente o que o PS queria." O PS tinha de começar a ter uma "linguagem acessível". Na mira de Guterres estava a proverbial incapacidade de Sampaio para falar claro. Os seus discursos longos, mastigados, soporíferos, tinham-se tornado numa anedota nacional.
Ao país, o candidato dirigiu três promessas. Uma: "Ser uma oposição forte e credível ao Governo." Outra: "Assumir como fundamental a causa da defesa, em concreto, dos direitos dos cidadãos e a causa do fortalecimento de uma sociedade civil, plural, moderna e dinâmica." Terceira: "Introduzir no PS um novo espírito de abertura à sociedade", em contraponto ao alegado amorfismo reinante. Embora nunca tenham sido pronunciados os seus nomes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva estiveram omnipresentes durante a intervenção. O primeiro por tudo o que significava dentro do partido; o segundo pelo que representava a nível nacional. Guterres achava-se capaz de protagonizar uma nova forma de fazer política, mais humana, mais próxima das pessoas e mais distante da tecnocracia cavaquista. "O PSD tem apostado sobretudo no betão, o PS apostará sobretudo no homem", sublinhou. Guterres recordou ainda que teria preferido uma solução de consenso que envolvesse Jorge Sampaio, que preferiu assumir a ruptura e partir para a luta.
Ao longo da sua história foi sempre com muito entusiasmo – mas não necessariamente com exagerada alegria – que as várias correntes do PS se bateram entre si. Havia os soaristas. Os gamistas. Os sampaístas (que se subdividiam entre os ex-GIS, os ex-UEDS e os ex-pinsasilguistas). Os guterristas. Os sindicalistas. Para todos, chegara de novo a hora de chafurdar na lama, num jogo que se sabia que não seria particularmente bonito. O maior resistente venceria. As clivagens internas eram mais visíveis que nunca, até a nível regional. Fernando Gomes, por exemplo, apoiava Guterres porque se tinha zangado com Sampaio. Já Narciso Miranda apoiava Sampaio porque não gostava de Gomes, seu adversário regional.
Os nove congressos até então realizados tinham sido marcados pelo domínio de um número reduzido de figuras, que se foram aliando ou afastando à medida dos seus interesses e ambições. Gama e Soares estiveram juntos contra Sampaio, Guterres e Constâncio. Mas já estiveram separados quando Gama apoiou Sampaio. Agora havia uma novidade: a disputa entre os dois líderes do ex-secretariado. Um duelo de titãs de contornos razoavelmente imprevisíveis. No instante em que Guterres lançou a sua candidatura só havia uma certeza garantida: a de que no dia seguinte ao congresso o PS seria o partido mais dividido da sociedade portuguesa. O que se passaria daí em diante não seria bonito.
Os dois candidatos tinham agora de angariar autarcas, líderes de secções, concelhias e federações para a sua causa. Há muito que Guterres tinha as suas tropas no terreno. Ele era o verdadeiro homem do aparelho. E a seu lado estava agora o seu melhor aluno, aquele que lhe sucederia no controlo do aparelho e que lhe multiplicaria o peso no PS profundo: Jorge Coelho.
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A reacção dos sampaístas foi violenta. Em entrevista ao Público poucos dias depois do avanço de Guterres, António Costa, então líder da Federação da Área Urbana de Lisboa (FAUL), acusou os guterristas de "traição", por alegadamente terem começado "a contar espingardas" ainda antes do desastre eleitoral. Tinha razão: há muito que Guterres, Coelho ou mesmo José Sócrates viajavam pelo país a medir o pulso aos seus apoios. Para que quando chegasse o momento nada falhasse. "A cultura de partido dos apoiantes do engenheiro Guterres corresponde ao reforço da lógica do aparelho de que foi ele o grande mentor (…) Um partido moderno não é um partido de aparelho, mas um partido de cidadãos. Sem esta ruptura com a lógica de aparelho, o PS não conseguirá sintonizar o quotidiano dos portugueses", acrescentou Costa na mesma entrevista.
Antes de partirem para a guerra, Guterres e Coelho, já seu braço direito, tentaram construir pontes com Sampaio. Um dia, na Assembleia da República, Jorge Coelho interpelou-o:
- Jorge, não devias candidatar-te. Vais perder e isso é desnecessário. Chegou a vez do António. Quando te candidataste convenci-o de que era a tua vez; agora estou convencido de que é a dele porque perdeste as eleições e está na hora de mudar.
O braço-direito de Guterres não podia ser mais claro: se Sampaio avançasse era derrota na certa. Mas este mostrava-se inflexível:
- Eh pá, as pessoas que me apoiam acham que tenho obrigação de ir a este combate. Não posso recuar.
Jorge Coelho fez tudo para evitar uma guerra fratricida dentro do PS. A dada altura teve praticamente fechado um acordo que passaria por um – António Guterres - ser líder do partido e candidato a Primeiro-Ministro e outro a Presidente da República. À última hora tudo desagregou.
A campanha interna foi longa, penosa e destrutiva. Durante cerca de dois meses e meio Guterres e Sampaio correram o país. O primeiro estava, claro, na linha da frente. Tinha tudo para vencer. A derrota de Sampaio nas legislativas fragilizara-o brutalmente. Naquele momento, o presidente da Câmara de Lisboa continuava um touro, como o definira António Pinto Leite por ocasião das eleições autárquicas – mas era um touro perdido na arena à espera do golpe de misericórdia. Talvez nessa altura Guterres não soubesse como se elege um secretário geral das Nações Unidas, mas em matéria de estratégia de conquista interna de partidos ninguém lhe dava lições. Ele e Jorge Coelho definiram em cada distrito quais eram as áreas centrais, as secções mais importantes, os líderes de opinião mais destacados, os presidentes de Câmara, os históricos do partido com peso regional. Depois de identificados, falaram individualmente com cada um deles no sentido de os mobilizar para a causa. Distrito a distrito fizeram contas para saberem exactamente que apoios precisavam para conquistar a distrital respectiva.
Passaram muitas noites na estrada. Guterres tinha uma regra sagrada: dormia sempre em casa, em Lisboa. Se acabasse um jantar com apoiantes em Bragança à uma da manhã e tivesse de estar em Viseu na manhã seguinte fazia os 400 quilómetros para a capital, dormia umas horas e viajava para Viseu, frequentemente com Armando Vara ou Jorge Coelho ao volante. Claro que as histórias rocambolescas se acumularam: numa dessas noites, no caminho de regresso a Lisboa, Armando Vara adormeceu e tiveram um acidente - nem a ópera que Guterres gostava de ouvir enquanto viajavam o manteve acordado.
Todos os minutos contavam; todos os momentos eram importantes: a dada altura, realizou-se uma reunião da Comissão Nacional do PS no Hotel Altis, em Lisboa, para fazer a análise dos resultados das eleições. No fim, Guterres aproveitou para reunir as tropas – que tinham vindo de todos os pontos do país - no auditório do Grão-Pará. Foi nesse encontro que Guterres informou alguns dos líderes regionais de que Jorge Coelho seria o coordenador da sua campanha. A partir daquele instante, era ele o interlocutor principal para todos eles. O homem que construiria a rede que os levaria ao poder.
Em Lisboa alugou-se um apartamento para instalar o quartel-general. Foi Fausto Correia quem o encontrou. Era a partir dali que se planeavam as deslocações de Guterres às catacumbas do PS. Quando era impossível ser o candidato a deslocar-se, Coelho fazia-o por si. E depois havia o controlo do que ia saindo na comunicação social. Tinha de se ir dando nota da sucessão de apoios que Guterres ia facturando. A gestão da comunicação era feita por Arons de Carvalho, que viria a ser secretário de Estado e que actualmente integra o conselho de administração da Entidade Reguladora da Comunicação. Todos dos dias saíam nomes, três ou quatro presidentes da câmara, professores e outras figuras de prestígio. Coelho controlava tudo ao milímetro. Todas as noites ligava a Arons de Carvalho. Falavam sobre a condução política e sobre os telejornais, que este ficara incumbido de ver e analisar. Antecipavam crises e projectavam ataques ao "inimigo".
Sampaio, por seu lado, apostou tudo numa "campanha afectiva", apelando às emoções dos militantes, contra a "sede de poder" que, em seu entender, minava as ambições do seu adversário. Em conversas informais, os insultos ao seu "challenger" por parte do seu círculo mais próximo eram frequentes. António Costa perdeu as estribeiras em várias ocasiões, tendo mesmo estado perto de chegar a vias de facto com apoiantes de Guterres. Este, sempre atento aos sinais, preocupou-se em desfazer o mito da sua alegada gula política. No comício de encerramento da campanha interna, realizado no Porto, foi claro: "Indigna-me que se faça campanha com base na chantagem afectiva sobre os militantes." E acrescentou: "Não quero ter apoiantes incondicionais. Não quero ouvir, daqui a dois anos, apoiantes meus defenderem-me com a irracionalidade com que ouço hoje alguns socialistas defenderem Jorge Sampaio." O candidato apelou ainda à opção racional dos militantes e jogou o trunfo da divisão do poder, sempre popular nas estruturas partidárias: "A direcção política que vou formar terá muita gente de todo o país e vai circular sempre por todo o partido, porque as eleições não se ganham só nas campanhas, mas todos os dias."
O dia D chegou na sexta-feira, dia 31 de Janeiro, quando se deu início à eleição de delegados. Durante uma semana, os militantes votaram. O candidato que conseguisse mais congressistas seria o vencedor virtual do X Congresso. Os homens de Guterres colocaram a circular a informação segundo a qual tinham 300 congressistas de vantagem (cerca de 60%); os de Sampaio foram mais modestos: a sua alegada vantagem seria de 20 a 40 delegados. Ambos garantiam que dominavam Lisboa e Porto, os grandes bastiões. Braga também era reivindicada pelas duas partes. Só um distrito não apresentava quaisquer dúvidas: em Castelo Branco, o círculo eleitoral de Guterres, estava previsto que Sampaio não chegasse aos 3% dos votos.
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Os resultados desfizeram todas as dúvidas: 975 delegados para Guterres, 537 para Sampaio e 7 para o jovem médico Álvaro Beleza, que encabeçou uma lista que dentro do partido só provocou sensação pelo seu carácter meio transcendental: no documento de suporte à candidatura, Beleza – que viria a tornar-se num influente segurista e que anunciou recentemente a sua candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos - apresentava-se como o autor de uma "revolução pop", definindo "os cidadãos típicos da civilização pop" como "teenagers mutantes, heroes turtleque abarcaram o universo imaginário das crianças". Prosseguia afirmando que "se antes as crianças quiseram ser Mickey, não o chegaram a ser na plenitude porque nem todas conheceram esse primeiro degrau da revolução", concluindo que agora "as tartarugas ninja entram pela casa de todos, não havendo crianças que não queiram transformar-se numa delas".
A tomada do poder estava consumada – faltava apenas oficializar a mudança em congresso. Na sua primeira entrevista como líder virtual do partido, Guterres foi lapidar sobre a limpeza que se seguiria: "Pretendo rejuvenescer profundamente o Secretariado Nacional, o órgão fundamental de decisão política." Era um recado amargo para todos os que, numa campanha duríssima, o tinham insultado, combatido, hostilizado. As suas cabeças iam começar a rolar. E era também um sinal inequívoco de uma nova realidade: um novo xerife acabara de tomar conta da cidade.
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