Por: Renato Drummond Tapioca Neto
A execução pública na Inglaterra e na França da Idade moderna tinha por finalidade prolongar o suplício da vítima o máximo possível e deveria ser realizada em local público. Após os processos revolucionários do século XVIII (Revolução Industrial na Inglaterra e Revolução Francesa), as noções de civilidade vão se alterar bruscamente. O novo século vai ser marcado pela repressão dos sentidos e daqueles instintos naturais que deixavam o homem mais próximo dos animais. Isso vai interferir inclusive no próprio tratamento para com os presos em penitenciárias e também nas penas de morte. É a certeza de que será punido por suas atitudes que deve desviar o indivíduo da vida criminosa. O essencial da pena, a partir de então, não será mais punir e sim “corrigir” o infrator e reeduca-lo para a vida em sociedade, “uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores” (FOUCAULT, 1987, p. 14). As práticas punitivas foram se tornando, assim, mais pudicas. “Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente” (FOUCAULT, 1987, p. 15).
Nesse processo, a própria relação castigo-corpo tomou uma nova dimensão: as penas físicas passaram a consistir em prisões, trabalho e servidão forçados, em contraste com os suplícios, bastante empregados nos séculos passados. Sendo assim, qualquer intervenção sobre o corpo físico, seja através do enclausuramento ou pelo trabalho obrigatório, tem por objetivo privar o indivíduo do seu direito a liberdade. Conforme nos diz Michel Foucault:
Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado” (FOUCAULT, 1987, p. 15).
Mesmo as sentenças de morte sofreram uma mudança, com a eliminação do caráter de espetáculo e cena que tinha em séculos atrás e também com a supressão da dor:
Ao se aproximar o momento da execução, aplicam-se aos pacientes injeções de tranquilizantes. Utopia do pudor judiciário: tirar a vida evitando de deixar que o condenado sinta o mal, privar de todos os direitos sem fazer sofrer, impor penas isentas de dor. O emprego da psicofarmacologia e de diversos “desligadores”, fisiológicos, ainda que provisório, corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade “incorpórea” (FOUCAULT, 1987, p. 15).
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Execução pública na Inglaterra.
O corpo deixou então de ser o alvo principal da execução, que passou a atingir a vida do criminoso. “Não mais aqueles longos processos em que a morte é ao mesmo tempo retardada por interrupções calculadas e multiplicada por uma série de ataques sucessivos” (FOUCAULT, 1987, p. 16). Uma morte rápida e quase indolor, em detrimento dos suplícios, em que se morria “mil mortes”. A guilhotina, nesse período, passou a ser o instrumento preferido do sistema penal francês para ceifar vidas, graças à sua ação aparentemente “indolor” no corpo da vítima. Através dela, a morte é reduzida a um acontecimento quase instantâneo. “Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os bens” (FOUCAULT, 1987, p. 17). Dessa forma, o corpo que sofre não é mais o físico e sim o corpo jurídico, possuidor, entre outros direitos, do de existir.
Contudo, Michel Foucault ressalta que algo dos suplícios ainda permaneceu no século XIX, pelo no menos por algum tempo, na França. Até 1832, os parricidas, regicidas e outros a eles assemelhados, eram conduzidos até o cadafalso cobertos por um véu negro e depois tinham as mãos cortadas. Ou seja, um pouco do antigo cerimonial de execução ainda prevaleceu nas primeiras décadas dos anos 1800. Assim, “o último vestígio dos grandes espetáculos de execução é sua própria anulação: um pano para esconder um corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 17). Na época da sobriedade punitiva, o grande espetáculo da punição física e do corpo supliciado dá lugar a um senso de pudor. O próprio discurso médico higienista colaborou para isso. Porém, nem todos os países adotaram com a mesma rapidez a supressão dos suplícios físicos. A Inglaterra, onde as práticas punitivas eram dotadas de estrema severidade, foi bastante reacionária ao cancelamento dessa forma de tortura física, “talvez por causa da função de modelo que a instituição do júri, o processo público e o respeito ao habeas-corpus haviam dado à sua justiça criminal”, mas principalmente porque “ela não quis diminuir o rigor de suas leis penais no decorrer dos grandes distúrbios sociais do período 1780-1820” (FOUCAULT, 1987, p. 18).
O histórico de revoluções e guerras civis que aconteceram na Inglaterra desde a Guerra das Duas Rosas (1455-1485) até o início do século XIX talvez explique também um pouco dessa severidade do sistema penal inglês. Com a ascensão da dinastia Tudor, em 1485, houve vários levantes populares e rebeliões contra o governo, especialmente após o processo de reforma religiosa iniciada pelo rei Henrique VIII em 1534. De acordo com Lawrence Stone, com base nos arquivos da Torre de Londres, estima-se que mais de 70 mil súditos tenham sido executados por traição em seu reinado, incluindo duas de suas seis esposas, Ana Bolena (1536) e Catarina Howard (1542). A sucessora de Henrique, sua filha Maria I, depois da morte do irmão Eduardo VI tentou trazer o país de volta para o catolicismo, punindo aproximadamente 300 protestantes ingleses que não aderiram à Sé de Roma, nos autos de fé da inquisição. Coube à rainha Elizabeth I encontrar um ponto de equilíbrio na política religiosa do país, ao decretar o anglicanismo como religião oficial do Estado. O que, entretanto, não impediu a própria Elizabeth de ordenar a execução de cerca de 700 ingleses na chamada Revolta do Norte, no princípio da década de 1570.
![Estima-se que o rei Henrique VIII tenha ordenado a execução de 72.000 pessoa em seu reinado, entre elas, duas de suas esposas.]()
Estima-se que o rei Henrique VIII tenha ordenado a execução de 72.000 pessoa em seu reinado, entre elas, duas de suas esposas.
Porém, a partir da década de 1570 um grupo de religiosos, os chamados puritanos, cresceu cada vez mais e passou a controlar determinados seguimentos da vida social, instituindo regras de conduta moral para regularizar modos religiosamente inaceitáveis do seu ponto de vista. No século XVII, esses grupos religiosos, melhor representados pelos quakers e metodistas, se colocaram contra os abusos da igreja anglicana, pregando a restauração da fé cristã original. Essas noções de moralidade religiosa interferiram, inclusive, no próprio sistema penal, apesar dos esforços do Estado em contrário. A severidade e o rigor nas penas na lei inglesa persistiram até as primeiras décadas do século XIX. Não obstante, a prática da tortura persistiu no sistema penal francês, apesar do suplício público ter-se reduzido consideravelmente entre os anos de 1760-1840. Da mesma forma, o poder sobre o corpo do criminoso não deixou de existir totalmente, uma vez que, como esclarece Foucault, castigos como prisão ou trabalhos forçados “nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra” (1987, p.19).
Contudo, a reforma no sistema penitenciário foi alvo de críticas durante a primeira metade do século XIX. Afinal, na prisão os detentos permaneciam mais bem alimentados e protegidos do frio que muitos pobres, a despeito de terem sido privados de sua liberdade. O afrouxamento da severidade no sistema penal foi visto durante muito tempo como se fosse um fenômeno quantitativo: ora, se há menos sofrimento e suavidade nas penas, consequentemente haveria mais respeito à “humanidade”. Porém, o que houve na verdade foi um deslocamento do objeto ao qual se aplica a ação punitiva. De acordo com Michel Foucault:
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo: “Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo”. (FOUCAULT, 1987, p. 20).
O corpo e o sangue são, assim, substituídos no aparato da justiça punitiva para dar lugar a uma forma de castigo praticamente incorpórea, que atinja mais à vida do indivíduo pela privação de sua liberdade.
![A partir da década de 1570 um grupo de religiosos, os chamados puritanos, cresceu cada vez mais e passou a controlar determinados seguimentos da vida social, instituindo regras de conduta moral para regularizar modos religiosamente inaceitáveis do seu ponto de vista. Execução do rei Carlos I na chamada Revolução Puritana.]()
A partir da década de 1570 um grupo de religiosos, os chamados puritanos, cresceu cada vez mais e passou a controlar determinados seguimentos da vida social, instituindo regras de conduta moral para regularizar modos religiosamente inaceitáveis do seu ponto de vista. Execução do rei Carlos I na chamada Revolução Puritana.
A partir do século XIX, com a ascensão do capitalismo e de uma classe industrial, surge então uma ideia de controle social pautada na correção dos indivíduos ao nível de suas atitudes, comportamentos, disposições, ou mesmo do perigo que possam representar para os outros membros da sociedade. Essa ideia de penalidade, baseada na reclusão em um local (edifício ou instituição), tinha por finalidade criar indivíduos dóceis e úteis, reintegrados à vida social como soldados do Estado. Dessa forma, a dupla “vigiar e punir”, que durante as monarquias inglesa e francesa da Idade Moderna, foi o ideal máximo do sistema penal, deu lugar à dupla “vigiar e corrigir”, para servir a um determinado propósito. Contudo, a falha desse modelo reside na ilusão de que o indivíduo “corrigido”, uma vez que tenha passado pela prisão, será aceito pela população sem mácula do preconceito gerado pelo comportamento que levou determinada pessoa ao cárcere. Por outro lado, as prisões, antes de controlar a violência, se tornaram um lugar onde ela é disseminada de forma quase descontrolada, fomentando a revolta no homem justamente pela privação de sua liberdade, meio adotado pelo sistema penitenciário como uma forma de respeitar o corpo do criminoso. Se nas monarquias absolutistas o suplício dos corpos era a forma de castigo adotada pelo sistema penal, na contemporaneidade um novo objeto de tortura, talvez mais cruel, foi adotado como alvo: a alma do preso.
Referências Bibliográficas:
CARLYLE, Thomas. História da Revolução Francesa. – São Paulo: Melhoramentos, 1961.
ELTON, G. R. England under The Tudors. – London: The Folio Society, 1997.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. – Petrópolis: Vozes, 1987.
GAULIA, Cristina Tereza. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 62, p. 37 – 64, abr. – set. 2013.
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções, 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel. 32ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
STONE, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa 1529-1642. Tradução de Modesto Florenzano. – Bauru, SP: EDUSC, 2000.