A Segunda Guerra Mundial e o fim do L’Auto
Após herdar a responsabilidade de ser o editor do L’Auto e o organizador do Tour de France com a morte de Henri Desgrange, Jacques Goddot se recusou a organizar a competição durante a ocupação germânica da França. Embora expressa-se publicamente acreditar que os membros do governo fantoche que comandava o país sob ordens alemãs fazia seu melhor para evitar que a situação se complicasse, Goddot resistiu bravamente à pressão dos nazistas, que faziam tanta questão da realização da prova. Àquela altura, o Tour já estava tão interligado ao povo francês que a sua não realização ia contra a política de “normalização” dos países invadidos pregada pelos invasores.
Ainda assim, Goddot e o L’Auto foram vistos como apoiadores do regime invasor quando da libertação da França. A acusação era de que o editor e o jornal haviam continuado a trabalhar com uma relativa tranquilidade, sem perseguição, o que podia indicar um apoio oculto aos alemães. Por isso o novo governo tomou a decisão de expropriar o direito à realização da prova e fechar as portas do L’Auto
Goddot não se abalou, entretanto. Encontrou lugar num prédio cruzando a rua de onde antes de localizava o L’Auto e fundou o L’Equipe, um novo jornal esportivo. O governo resolveu abrir uma concorrência e pela oportunidade de organizar o Tour, e Goddot e seu novo jornal entraram na competição em um consórcio com o Le Parisien Libéré. Eles organizaram uma das duas provas que concorreram ao direito de ganhar o status de Tour de France, a La Course du Tour de France, competindo contra a Ronde de France, organizada pelos jornais Sports e Miroir Sprint. Goddot e seus aliados venceram pela experiência.
Assim, em 1947 o prêmio voltou a ser organizado pela mesma “linhagem” que o criara. Naquele ano o prêmio foi oportunamente vencido por um membro do time francês, Jean Robic.
É importante ressaltar que Robic era de fato francês, uma vez que pelas dificuldades do pós-guerra diversas nações, como Holanda e Suíça tiveram de incluir competidores de outras nações para completar suas equipes. O próximo francês a vencer o Tour seria apenas Louison Bobet, em seu impressionante tricampeonato consecutivo de 1953 a 1955.
O Tour faz 50 anos
Em 1953, em comemoração aos cinquenta anos da primeira competição, o Tour introduziu uma nova competição interna: a Camisa Verde. A ideia era retornar os pontos, como uma segunda competição a ser disputada. Enquanto a competição principal leva em conta o tempo entre cada competidor, a camisa verde levaria em conta apenas a ordem de chegada. Portanto, não adiantaria a um interessado na camisa verde realizar uma “fuga”, se desgastando imensamente apenas por uma pequena diferença de pontos.
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O resultado foi que as provas passaram a ter como um possível final um “sprint” à beira da chegada, com os competidores explodindo em direção à vitória numa emocionante disputa. Isso só contribuiu para o aumento da popularidade da competição. Com os anos, as etapas planas passaram a valer mais pontos na competição e as montanhosas menos. Além disso, a camisa verde veio a absorver as funções da vermelha (que durou de 1984 a 1989), uma camisa premiada aos competidores que passassem por determinados pontos no meio do trajeto de cada prova antes dos demais. Assim, a competição da camisa verde hoje leva em conta tanto sprints no final das etapas como as metas-volantes no seu intermédio.
Os Dominadores
Os anos seguintes foram caracterizados por períodos de dominação preponderante por parte de um ciclista. Tudo começou com o tricampeonato do já citado Louison Bobet, mas isso viria a ser um simples brilho pálido perto do que outros fariam a seguir.
Primeiro, veio Jacques Anquetil. Esse francês era apenas um jovem de 23 anos em 1957, mas era tão temido por Bobet que esse não o queria na equipe francesa competindo pelo título. Entretanto, o veterano se viu mentalmente exausto ao final do Giro D’Itália daquele ano e não conseguiu impedir por meio de seu prestígio a inclusão do jovem na equipe. Anquetil venceu aquele ano, mas não as intrigas dentro da equipe francesa. Em 1959, foi acusado de jogar para que o espanhol vencesse a competição ao invés do compatriota Henry Anglade. Entre outras atitudes, isso criou uma situação complicada com os fãs do esporte, que passaram a vê-lo como um vilão.
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Em 1960, Anquetil preferiu se ausentar do Tour, voltando em 1961 para iniciar sua predominância absurda pelo próximos anos, vencendo todas as competições até 1964. Em 1963, um ano depois do retorno dos times comerciais, ele fingiu um problema mecânico no topo de uma montanha para que o diretor de sua equipe pudesse dar a ele uma bicicleta melhor para a descida. O plano deu certo e Anquetil conseguiu superar Bahamontes na etapa, lhe roubando o primeiro lugar da classificação.
Demorou até 1969 para que surgisse outra máquina de vitória: Eddy Merckx, para alguns o melhor ciclista de todos os tempos. Merckx competiu no Tour de 1969 apesar dos pedidos de seu cardiologista para não fazê-lo, uma vez que o médico havia encontrado problemas no seu ritmo cardíaco. Eddy não o escutou, foi para a competição e não venceu apenas a classificação geral, como se tornou o primeiro e até hoje único ciclista a terminar a competição com a camisa amarela, a verde e a branca de bolinhas. Sua dominância foi tamanha que ele estabeleceu na disputa pela camisa amarela uma vantagem de mais de 17 minutos, um absurdo.
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Merckx estendeu seu reinado pelos próximos anos, até ser momentaneamente destronado pelo espanhol Lucas Oscaña em 1973 ao se ausentar do Tour daquele ano por interesses de seu patrocinador. Mas como quem é rei nunca (ou pelo menos dificilmente) perde a majestade, Eddy venceu novamente o Tour em 1974. Este último ano, aliás, foi o único em que ele venceu apenas a classificação geral, tendo vencido o prêmio de Rei da Montanha em 1969 e 1970 e a classificação por pontos em 1969, 1971 e 1972.
Após o belga Merckx, tivemos mais um francês dominante: Bernard Hinault, vencedor de 1978, 1979, 1981, 1982 e 1985. Se não superou o antecessor em dominação da competição, Hinault pode se gabar de sua competitividade, tendo sido também segunda colocado em 1984 e 1985. Se levarmos em conta que ele não pode completar o Tour de 1980 e se ausentou em 1983, nota-se que Bernard é o único competidor a jamais ter terminado em primeiro ou segundo lugar em todos os Tours que completou. Além disso, Hinault foi o primeiro destes multicampeões a ter o privilégio de encerrar o Tour na hoje tradicional etapa do Champs-Élysées, nas também hoje tradicionais voltas regadas a champagne. Embora em 1987 tenha havido uma disputa pelo título na etapa, desde então se estabeleceu um acordo de cavalheiros para que esta seja uma celebração para o vencedor da classificação geral, restando alguma competição apenas na disputa por pontos.
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E por fim, para fechar a lista dos grandes dominadores do Tour, de seus saudosos pentacampeões, temos Miguel Indurain, o espanhol que é o único vencedor de cinco competições seguidas da classificação geral (ao menos, o único que retém os títulos). Indurain, o único espanhol dentre estes campeões, é curiosamente o único deles a não ter vencido na carreira todas as três grandes voltas ciclísticas, faltando-lhe, justamente, a Vuelta a España. Conhecido pelo seu excelente desempenho nas provas de contrarrelógio, o espanhol mostrou àqueles que viriam posteriormente uma forma inteiramente segura de vencer o Tour: fazer uso dessas provas individuais para assumir o controle, e mantê-lo através do trabalho em equipe. Esta fórmula tem sido explorada à exaustão em tempos recentes.
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Com o último título de Indurain em 1995, se encerra uma era de glórias do Tour de France e começa uma era de inseguranças. Mas olhando para o passado e enxergando Anquetil, Merckx, Hinault e Indurain, os quatro homens que junto seguram um quinto de todos os títulos da competição, não há como não se apaixonar por essa prova.
A era das trevas? (Ou será do doping?)
Embora o Tour tenha convivido com constantes escândalos de doping, nada se assemelha o que se passou em 1998, conhecido como “O Tour da Vergonha”. Naquele ano Willy Voet, um assistente (soigneur) da equipe Festina, foi preso portanto EPO, hormônios de crescimento, testosterona e anfetamina. A polícia se mobilizou numa busca pelos hotéis das equipes, e encontrou mais produtos de melhoria de performance na posse da equipe TVM. Os corredores se organizaram numa greve, e a mediação da organização fez com que a polícia diminuísse as buscas. As provas continuaram, mas muitos ciclistas abandonaram a competição daquele ano.
O caso do Tour de 1998 foi uma cartada importante para a criação de uma agência internacional antidoping, ligada ao Comitê Olímpico Internacional, a WADA (World Anti-Doping Agency). Ainda assim, o doping era uma constante na competição, só que os ciclistas e suas equipes se mostravam cada vez mais difíceis de serem pegos.
Enquanto isso, um americano fazia uma recuperação assombrosa. Lance Armstrong já era considerado um grande ciclista quando mais jovem, até que em 1996 um câncer de testículo o tirou do circuito. Em 1998 ele voltou a competir e o primeiro título veio em 1999. Até 2005, ele fez o impensável: venceu sete edições seguidas, passou a ser considerado sem qualquer dúvida o melhor de todos os tempos e se aposentou no auge. Isso não durou muito. Vamos apenas citar que em 2006 dois dos grandes favoritos, Ian Ulrich e Ivan Basso, foram retirados da competição por suas equipes por acusações de doping e que Armstrong tentou um retorno entre 2009 e 2011, tendo sido o Tour de 2010 sua despedida da competição que o consagrou – e apesar da idade ele conseguiu começar bem a competição, antes que diversos problemas aquém da sua capacidade física o jogassem para baixo na competição.
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Tendo de conviver constantemente com acusações de doping por toda sua carreira, não foi de estranhar que outra surgisse contra Armstrong em 2010. A acusação dessa vez veio, porém, de uma fonte mais próxima: o ex-colega Floyd Landis, que vencera o Tour de 2006 apenas para ser desclassificado posteriormente por testar positivo para testosterona depois da 17ª etapa. Landis documentou publicamente todo o esquema da sua antiga equipe, a US Postal (posteriormente Discovery) para o doping. Uma investigação se iniciou e as conclusões foram de que Armstrong estava comprometido com o caso. Como resultado, seus títulos a partir de 1996 foram cassados e ele foi permanentemente banido do esporte.
Armstrong foi à televisão dar uma entrevista para a apresentadora Oprah Winfrey em que admitiu o uso de drogas para melhorar a performance. Desde então, diversos ciclistas vieram a público admitir o uso desse tipo de ajuda. A WADA e a União Ciclística Internacional (UCI) apertaram o cerco e, desde então, pouquíssimos casos de doping têm sido constatados. De uma forma ou de outra, Armstrong mudou o esporte permanentemente, pena que não como esperava.
Epílogo
Desde a aposentadoria de Armstrong, estabeleceu-se um domínio espanhol da prova, com vitória de Óscar Pereiro (herdando o título do “excomungado” Floyd Landis em 2006), Alberto Contador (2007 e 2009) e Carlos Sastre (2008). Então tivemos o luxemburguense Andy Schleck se sagrando campeão de 2010 retroativamente em 2012, após a descoberta de que Alberto Contador, o então campeão, havia estado dopado na ocasião. Em 2011, vimos o australiano Cadel Evans levar o título, seguido pelos britânicos Bradley Wiggins e Chris Froome.
Em geral, a história do Tour nos ensina que após um longo domínio como foi o de Lance Armstrong vemos uma série de competidores se alternarem no pódio, até a ascensão de um grande dominador. Armstrong foi esse dominador, ainda que com auxílio de drogas – um reflexo de seu tempo.
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