Há quatro anos, uma das vozes mais destemidas dizia adeus ao Parlamento, onde sempre confrontou quem estava na cadeira do poder. Isso não significou que abandonasse a vida política, pelo contrário. Depois de deputada, proporia alternativas como as que viriam a dar origem à 'Geringonça'. Hoje, analisa e comenta a atuação dessa mesma solução governativa.
Ana Drago recebeu-nos, em sua casa, para uma entrevista não só sobre os temas da atualidade, mas também sobre a exaustão que sentia nos últimos anos em que fez parte do Bloco de Esquerda e da vida pós-Assembleia da República, da qual diz não ter saudades.
Além de elogiar a reinvenção do partido de que fez parte, subscreve as palavras de Catarina Martins sobre a renegociação da dívida, ao mesmo tempo que aponta o dedo a António Costa e a Marcelo Rebelo de Sousa por não representarem devidamente Portugal perante as instituições europeias. Sobre o Presidente da República, diz até esperar que este “deixe a sua” marca (negativa) num hipotético momento de divergência entre o PS, Bloco e PCP.
A 'Geringonça' tem sido uma boa solução para a reinvenção positiva e maior abertura do sistema político?
Sem dúvida. A Geringonça foi uma mudança histórica porque havia um muro de cimento entre os vários partidos à Esquerda e uma impossibilidade de diálogo. Acho que se percebeu que, a partir de 2011, era necessário dar esse passo em frente. Era, num primeiro momento, tirar a Direita do poder. Num segundo momento, começar a reconstruir um projeto de desenvolvimento para o país. É bem difícil, mas acho que está a avançar.
Aquando do nascimento da Geringonça, dizia-se que o Partido Socialista estava refém do Bloco e PCP para continuar a governar. Agora diz-se ser o Bloco e o PCP os reféns do Governo por quererem evitar eleições antecipadas. É de facto isto que está a acontecer?
A sensação que eu tenho dos partidos é que eles compreendem que parte da sua credibilidade junto dos seus eleitores está ligada à sustentação do governo da Geringonça. Por outro lado, também compreendem que se não disputarem determinadas conquistas, também perdem essa credibilidade. Eu acho que os três partidos estão ali numa situação em que estão sempre a gerir as suas margens de manobra. O que eu creio que, apesar de tudo, se mantém desde o inicio é que na maior parte da cabeça dos portugueses, e como diz o Woody Allen, “a vida não é assim tão má quando se considera a alternativa”, que é a morte [risos]. No caso português, apesar das suas insuficiências em não conseguir agradar a cada um dos três blocos políticos que ali estão representados é sempre melhor quando se considera a alternativa, ou seja, o regresso de uma aliança de Direita. Esse receio [do regresso] da aliança da Direita continua tão presente na vida das pessoas porque os anos da crise foram tão duros que eu acho que se mantém esta exigência de haver um esforço por parte dos partidos de encontrarem compromissos de negociação para não regressar ao passado. Creio que o PCP e o Bloco estão conscientes disso.
Olhando para trás, e se estivesse sentada no lugar de Catarina Martins, teria votado a favor da solução governativa atual?
Sem dúvida. Eu defendi esta articulação entre os partidos à Esquerda, saí do Bloco exatamente por defender esta articulação e, portanto, acho que era determinante para este momento e está a provar – com dificuldades, erros e divergências – o seu mérito.
Àqueles que dizem que é impossível ter a Esquerda a governar um país dados os exemplos do passado, que resposta gostaria de dar?
Vejam o que está a acontecer [risos]. Acho que se vive em Portugal uma consciência de que não há um futuro radioso e que vai tudo correr maravilhosamente bem. Estamos todos conscientes das dificuldades que existem pela frente, nomeadamente na questão Europeia e na forma como isso limita o potencial desenvolvimento do país com todas as restrições que nos são impostas, mas sente-se que já é possível respirar. Entre 2011 e 2015, havia uma tristeza imensa, de que o país estava a acabar, que os nossos jovens estavam a emigrar, que não existia futuro. É o início de uma viragem e este Governo de Esquerda mostra que é possível governar à Esquerda.
Bloco percebeu que a estratégia 'Orgulhosamente Sós' que estava a apresentar não funcionavaOlhemos concretamente para o Bloco, partido que representou na sua atividade política. Acha-o mais forte ou mais fraco agora do que no seu tempo?
A meio da campanha eleitoral de 2015, o Bloco percebeu que a estratégia ‘Orgulhosamente Sós’ que estava a apresentar não funcionava. Percebeu que, para levar a avante aquilo que era o seu projeto, teria de estar disponível para um debate à Esquerda. Isso fortaleceu muito o Bloco e deu-lhe uma nova credibilidade na política portuguesa. Hoje, o Bloco é muito mais forte. Há sempre um problema de manter a sua identidade em ser diferente do Governo e portanto há sempre aquela margem de conflito com o Partido Socialista.
A entrada do ‘sangue fresco’, como a deputada Mariana Mortágua, contribuiu para essa reinvenção do Bloco?
Sem dúvida. O Bloco fez uma renovação geracional e isso deu uma frescura às pessoas que hoje representam o Bloco e isso tem funcionado bastante bem.
Tudo isto explica o progresso do partido em conquistar terreno enquanto terceira força política?
Agora, o Bloco tem todas as capacidades para isso. Tem de continuar um esforço de captação da participação das pessoas. Isso é o fundamental: Os partidos terem a capacidade de ouvir e trabalhar num campo mais alargado que não seja uma mera estrutura de profissionais da política. Isso é o fundamental.
Sobre as autárquicas, que acontecem já este ano: João Semedo é uma boa aposta para o Bloco conquistar a Invicta?
Creio que sim. O João conhece muito bem e é um apaixonado pelo Porto. Vive lá há 30 anos e é sem dúvida uma boa figura.
No caso de Lisboa, foi apresentado Ricardo Robles. Sendo um nome praticamente desconhecido, é também uma boa candidatura?
Sim. O Ricardo conhece muito bem Lisboa, tem vindo a trabalhar na Assembleia Municipal ao longo dos últimos quatro anos e é hoje muito conhecedor das dinâmicas e dos problemas que Lisboa enfrenta e dos desafios que está a enfrentar.
Aquilo que o país tem de discutir é se vai passar os próximos vinte anos nesta espécie de limbo, em que nada anda para a frente nem para trás
O défice foi de facto revisto em baixa para 2%. Acha que António Costa tem, de facto, conseguido virar a página da austeridade ou o Governo está a dar com uma mão e a tirar com a outra?
O enorme aumento de impostos vem de Vítor Gaspar e penalizou muito os rendimentos mais baixos. O Partido Socialista tem feito uma espécie de equilibrismo que é muito difícil de fazer: Tem conseguido fazer restituição de rendimentos, tem o projeto de refazer os escalões e reduzir o impacto da fiscalidade sobre os rendimentos, tem feito uma aposta de requalificação da organização dos serviços públicos. Mas o Partido Socialista está sempre preso dos seus compromissos na área europeia e desta disciplina austeritária que nos tem sido imposta. O debate sobre a dívida e essas restrições europeias é fundamental. Aquilo que o país tem de discutir é se vai passar os próximos vinte anos nesta espécie de limbo, em que nada anda para a frente nem para trás. As restrições orçamentais que nos são impostas e o peso da dívida que temos por esta imposição europeia de que ela não é negociável, é uma sombra perante o futuro do país.
Que conselhos daria hoje a António Costa no Parlamento para conseguir chegar a um lado e a outro?
O Partido Socialista desenhou para Portugal um compromisso em que o Estado tinha um papel preponderante, um modelo de desenvolvimento, capacidade de sustentar a economia e serviços públicos. É preciso que o Partido Socialista confronte esse projeto com o que é hoje o Projeto Europeu, que já não é uma esperança de desenvolvimento para o país. Hoje, perante as evidências do que é a castração da moeda única, o PS tem de o repensar. Um dos debates que tem de se fazer é se não é preferível, para uma economia tão fraca e tão heterogénea como a portuguesa, desligar-se de uma moeda que significou a estagnação do crescimento económico durante os últimos 15 anos. Portanto, ficarmos ligados ao Projeto Europeu mas sem estarmos ligados diretamente à moeda única porque ela não favorece a economia portuguesa e cria problemas de legitimidades. É preciso começar a pensar nestas coisas.
Dada a fragmentação do espaço europeu e as fragilidades que lhe apontou, quando o PCP fala na saída do euro e no regresso ao escudo, isso é algo não totalmente descabido?
É algo que tem de ser pensado. Para muitos portugueses, a vivência europeia significou uma melhoria dos seus níveis de vida. Ainda continuamos emocionalmente ligados à Europa e não nos queremos isolar, mas temos que pensar que, hoje, o projeto europeu desenhado em torno do Euro, significou uma imposição de restrições que para nós – que somos de facto uma economia e um país diferente dos países do norte e do centro da Europa – uma impossibilidade de desenvolvimento. Temos que encontrar mecanismos que não signifiquem que nós saímos da Europa e nunca mais olhamos para trás, mas que temos uma relação de cooperação que não nos vai tolher o nosso projeto de desenvolvimento.
Da Direita continuam a surgir críticas de que a política aplicada funciona, mas apenas para o dia seguinte. Falta, de facto, uma perspetiva de futuro do Governo?
Há poucos dias, o Ministro do Planeamento desenhava uma nova estratégia do Governo em que seria possível, com os níveis de crescimento e consolidação orçamental que o Governo está a conseguir, encontrar um caminho que melhorasse o rating da República e que isso significasse, de alguma forma, uma redução da imposição dos custos da dívida e dos juros que estamos a pagar. INão creio que isso seja uma estratégia de desenvolvimento. Preocupa-me que o PS se venha a centrar nesta ideia que o seu objetivo máximo é melhorar o rating da República. Temos um problema de dívida mas, sejamos claros, não há nenhum economista que eu conheça no mundo, que diga que uma dívida como a que nós temos, de cerca de 130% do PIB, é sustentável. Ela tem de ser renegociada, tal como as empresas vão junto das entidades credoras dizer que há um momento de contração e de recessão na economia.
A reestruturação da dívida é algo em que o Bloco sempre insistiu mas o Governo não mostrou muita abertura, talvez por ser um tema de discórdia. Num Governo que precisa de constante diálogo para encontrar soluções, houve temas que geraram discórdia como a Carris, TSU, a CGD e mais recentemente o Novo Banco. As bases que criaram a Geringonça vão resistir a todas estas discórdias até ao final da legislatura?
É como nas relações amorosas, um dia de cada vez [risos]. Creio que todos esses processos vão sendo negociados. Sobre a Caixa e a Carris os desentendimentos não são particularmente importantes. Há o problema do Novo Banco. É incompreensível a decisão do Governo. Nós próprios ainda não conseguimos compreender muito bem como é que foi possível que um privado comprasse um banco público por um determinado valor, mas o valor das responsabilidades do Estado quadriplicasse.
Concorda com Mariana Mortágua quando esta diz que o Novo Banco “foi dado”?
Concordo. Foi dado. Havia uma imposição de Bruxelas dizendo que o banco não podia ficar público e portanto o PS encontrou um mecanismo em que, aparentemente, nós ficamos com o risco e o privado fica com a parte boa. É mais um daqueles negócios incompreensíveis e que, em grande medida, ele foi forçado por Bruxelas.
Se há partido que não tem poupado o setor financeiro é o Bloco, que repetidas vezes pediu a demissão de Carlos Costa enquanto governador do Banco de Portugal? Subscreve esta reivindicação que parece ignorada pelo Governo?
Se fizéssemos hoje uma sondagem, a esmagadora maioria diria que o governador do Banco de Portugal não tem estado a altura daquilo que têm sido as situações. Com certeza que é um momento difícil do sistema financeiro, mas é para isso que ele lá está. Claro que o PS está também num processo que não quer, de alguma forma, criar um conflito com o Presidente da República que, sobre esta matéria, tem sido bastante reticente a qualquer tipo de mudança. A verdade é que apesar dos sucessivos anúncios que o Governo vai dizendo de que o sistema financeiro já está a estabilizar, não me parece que assim seja. Um refrescamento da liderança do Banco de Portugal seria mais do que necessário e parece-me absolutamente justificado.
Voltando às negociações e temas que não geram acordo entre os partidos. O Plano Nacional de Reformas e o Plano de Estabilidade foram recentemente apresentados e o Orçamento de Estado para 2018 está a caminho. Adivinha-se mais um processo difícil de negociações?
Acho que vai haver margens de negociação relativamente estreitas porque o Governo parece pouco disponível para alargar muito aquilo que são os seus compromissos com reformas, a integração dos precários no Estado, com a questão do descongelamento na progressão das carreiras na Função Pública. Acho que vai haver discussões acesas e intensas sobre a intencionalidade reformista do Governo. Acho que vai haver um novo período de fricção entre os parceiros que sustentam o Governo, sem dúvida.
No momento em que as coisas começarem a correr mal na articulação à Esquerda, creio que Marcelo, pela área e natureza política que tem, poderá criar problemasFalemos sobre Marcelo Rebelo de Sousa. Há um ano, numa entrevista, dizia-nos que ele tinha feito uma “campanha de Miss Simpatia” durante as eleições presidenciais. Depois de eleito, o Presidente continua a fazê-lo. Isso é bom ou mau? Tornou-se uma figura de afeto na política portuguesa, mas Marcelo respira política há décadas. Creio que Marcelo faz a mesma leitura sobre o clima político do país, de que as pessoas estão relativamente satisfeitas com a articulação à Esquerda e não tem criado conflitos, exceto numa ou outra matéria. Mas, no momento em que as coisas começarem a correr mal na articulação à Esquerda, creio que Marcelo, pela área e natureza política que tem, poderá criar problemas.
Acha que sim? Há quem diga que ele tem sabido ‘separar as águas’ e ajudado a levar o Governo a bom porto ...
Marcelo compreendeu que, ao ser eleito Presidente depois da Geringonça acontecer, se criasse algum tipo de instabilidade num país que conseguiu voltar a respirar um bocadinho, isso ser-lhe-ia cobrado e teria um problema de popularidade. Creio que é da sua natureza política, num determinado momento, deixar a sua marca: Num momento em que houver algum indício de instabilidade na articulação à Esquerda, Marcelo não irá remar para resolver esse conflito mas pelo contrário, para deixar a sua marca na formação de um novo projeto político que pode eventualmente vir a ser a ideia de um bloco central no país, quando houver uma nova liderança do PSD.
Há quem o critique por falar de mais e quem o aplauda por estar praticamente em todo o lado. De que lado está?
Eu nada tenho contra o Presidente que visita o país e está presente. Tem feito um mandato calmo e não tenho verdadeiramente nada a apontar sobre isso.
Noto alguma reticência neste tema da sua parte. O que é que acha que falta ao atual Presidente da República?
Um Presidente da República dever permitir gerar alguns debates que sejam sobre o futuro do país. Marcelo Rebelo de Sousa continua muito preso a um determinado modelo do que seria o projeto europeu e não quer, em nenhum momento, estimular um debate sobre a Europa tal e qual como ela existe e não um projeto utópico do que seria uma Europa feliz. Acho que esse seria um papel importante do Presidente da República, porque o que nós temos em causa é se há limites à democracia portuguesa. É preciso questionar se a Europa não coloca limites à nossa capacidade de escolha. Ora, o Presidente da República é agarantia máxima do funcionamento das instituições. Esse é o papel central que ele deveria ter neste momento.
Falta uma representação mais eficaz do país lá fora?
Sim, mais confrontacional. Sempre achei que essa ideia de Portugal ser o bom aluno da turma nunca nos favoreceu [risos].
![]()
Com 41 anos de vida e muitos deles passados na esfera política, Ana Drago é hoje uma ex-deputada que continua a ser abordada na rua por pessoas que dizem "conhecer a sua cara de algum lado".
Deixou o Parlamento, do qual diz não ter saudades, há quatro anos, tendo com isso conquistado "anos de vida". Continua a exercer uma responsabilidade cívica, que se materializou na criação da Fórum Manifesto e se prolongou com a atividade de comentadora política que exerce semanalmente.
Prestes a acabar uma tese de doutoramento, Ana Drago recebeu-nos em sua casa onde nos contou como tem sido a sua vida a seguir à Assembleia da República.
Estão quase a fazer quatro anos desde que decidiu abandonar o Bloco de Esquerda. Tem saudades de ser deputada, do Parlamento, do trabalho político do dia-a-dia?
Não muitas. Eu estava bastante exaurida no momento em que saí. Já estava no Parlamento há quase uma década e aquilo é um trabalho interessante mas de alguma forma rotineiro, e uma pessoa tem sempre que ter uma espécie de distanciamento, perceber que aquilo não é a vida real, não é o resto do país e que aquilo é uma espécie de aquário. Mas, em particular, a partir da crise de 2011, foi particularmente duro porque nós sentíamos o país a desfazer-se à nossa volta.
Senti que quando as pessoas vinham ter comigo eu não tinha alternativa. Uma pessoa sentia-se uma espécie de fraudeDisse até numa entrevista que se sentia “profundamente infeliz nos últimos anos” em que esteve no Parlamento. Quer falar um pouco sobre isso?
Nós tínhamos a perceção de que a vida das pessoas estava a fragmentar-se. As pessoas conheciam-me na rua e vinham ter comigo a dizer que tinham perdido o emprego, que iam entregar a casa ao banco e ainda ficavam com a dívida, que os seus filhos iam emigrar e que não tinham esperança no futuro. Era uma sensação de que o país se estava a desfazer e, enquanto representante político no Parlamento, sentia uma enorme impotência. Acima de tudo, o que eu senti nesses anos era a impossibilidade de dizer a essas pessoas que havia um caminho de alternativa rápido que conseguisse responder à vida das pessoas. Nessa altura, isso devia-se à incomunicabilidade que existia entre os partidos da Esquerda e de não haver nenhuma perspetiva de que o mais importante era tirar a Direita do poder. Como isso não era possível dentro do meu partido [Bloco], com o PCP e com o Partido Socialista, eu senti que quando as pessoas vinham ter comigo eu não tinha alternativa. Uma pessoa sentia-se uma espécie de fraude.
Isso também teve a ver com a chamada ‘liderança bicéfala’ dentro do Bloco na altura?
A liderança bicéfala foi um processo de coordenação que o Bloco encontrou na altura. Tinha a ver com a estratégia do Bloco em dizer que queria defender a vida das pessoas, mas para isso era necessário – como eu creio que a Geringonça está a provar – estar disponível para fazer diálogos à esquerda que encontrassem os mínimos comuns. Isso é que defendia a vida das pessoas e dessem alguma esperança ao país. Na altura, esse debate não era possível no Bloco, não havia essa maioria dentro do partido.
Um hipotético regresso à política ativa é algo completamente fora de questão?
Quando entrei para o Parlamento, aos meus 20 anos, prometi a mim mesma que não quereria fazer toda a vida política. Agora estou aqui e estou muito bem [risos]. Claro que sinto sempre a responsabilidade em ser parte ativa e fazer intervenção cidadã.
Mesmo tendo abandonado o Bloco, integrou a Fórum Manifesto, encabeçou o Livre/Tempo de Avançar e é comentadora política. É gosto pela área ou necessidade de continuar a ser uma voz ativa na sociedade?
Na verdade, o Tempo de Avançar foi quem possibilitou a articulação entre os partidos à Esquerda. A dois dias das eleições, nós propusemos isso mesmo aos partidos. Hoje faço comentário político e continuo a sentir essa necessidade. Não creio é que a participação política esteja restrita aos partidos e à representação nas instituições. Há muito para além disso e a democracia portuguesa sofre desse estreitamento no campo partidário.
Quando fala nesse estreitamento, rapidamente nos lembramos da ideia assente sobre o distanciamento entre o povo e os políticos. Tem havido um esforço para colmatar isso?
Há momentos em que os partidos tentam fazer isso para alargarem o campo de debate e diálogo. Apesar de tudo, creio que isso não tem sido assim tão óbvio nos últimos anos. Os partidos acabam por ter sempre coisas para resolver e tratar. Fazem as suas realizações mais para dizerem o que querem fazer e menos para receber um input que venha de fora. Isso restringe o campo de participação e envolvimento das pessoas na prática política. As redes sociais e os mecanismos de hoje permitem um acesso mais direto dos cidadãos a um político. Mas não chega. É preciso criar movimento social, organizações que sejam capazes de sustentar reivindicações dos cidadãos e isso continua a faltar na sociedade portuguesa.
Como tem corrido o trabalho da Fórum Manifesto?
Tem corrido bem no sentido em que é uma nova proposta de intervenção política, muito mais ligada a outras organizações sociais, a determinados debates políticos. Temos feito o debate sobre a Europa e vamos agora fazer outro sobre as eleições francesas e o que elas significam no contexto europeu. Fizemos uma universidade de outono em que debatemos estas questões, vamos fazer outra sobre questões de trabalho, precariedade e novas formas de trabalho. Acho que vamos estabelecendo um menu de debates de sociedade que entendemos que têm de ser feitos e isso é bastante positivo.
Na altura da criação da Fórum Manifesto, descreveu-a como “um aliado do Governo” que podia “ajudar a encontrar pontos de convergência entre os partidos”. Isso tem sido conseguido? A negociação do Governo é feita entre os partidos que o suportam e não vale a pena ter ilusões sobre isso. O que eu acho é que, no momento político que estamos a viver, não se pode circunscrever essa atuação estritamente centrada sobre as instituições e os partidos políticos. Nó precisamos de criar massa crítica e cidadania participada que consiga pensar o que é que o país deve ser no futuro. A sociedade portuguesa sempre foi fraca nesses movimentos da sociedade civil e a Fórum Manifesto gostava de poder mudar um pouco isso.
Há dois anos aventurou-se numa tese de doutoramento sobre ‘Conceções da sociedade democrática no pós-25 de Abril’. Como é que está a correr? Já a acabou?
Não me fale nisso, por favor [risos]. Estou naquele período em que estou com a sensação de que estou perdida e ao mesmo tempo fascinada com o trabalho, mas enfim, vai andando [risos].
Mas está confiante?
Se me pergunta agora, não, de modo algum [risos]. Pode ser que daqui a uns meses esteja melhor. É um tema muito apaixonante, vamos ver no que dá.
Há pessoas que me dizem ‘Faz falta!’ e eu digo logo ‘Não não! Isto tem de se fazer um período de missão na política e não podemos estar lá sempre’Tirando a política, com o que é que tem ocupado o seu tempo? Conseguiu arranjar mais tempo para si?
Sim. A política exerce uma enorme pressão sobre o nosso quotidiano e agora sou uma pessoa mais calma, com mais tempo para as crianças, para os amigos.
As pessoas ainda a abordam na rua como se fosse deputada?
Sim, embora agora seja sempre de ‘Eu conheço a sua cara de algum lado’ [risos].
O que é que lhe costumam dizer?
Depende… Há pessoas que me dizem ‘Faz falta!’ e eu digo logo ‘Não não! Isto tem de se fazer um período de missão na política e não podemos estar lá sempre’ e eu acho que as pessoas entendem isso.
Um dos meus medos, quando saí do Parlamento, era imaginar-se por volta dos 45 ou 48 anos, ainda no Parlamento. Estar 20 anos no Parlamento não faz nem pode fazer bem, nem aos próprios nem à Democracia. A ideia de fazermos um período de missão na política e depois construirmos a nossa vida é importante. Mas sinto sempre esta espécie de responsabilidade, portanto quero estar sempre envolvida na política, mas isso não significa estar sempre dentro das instituições.
A saída do Parlamento devolveu-lhe anos de vida no que toca ao tempo que tem disponível, por exemplo, para os seus filhos?
Sem dúvida [risos]. A política, quando é levada a sério, é muito exigente porque tem de se ouvir muito, estar em muitas reuniões para juntar trabalho e discutir. Isso consome muito tempo e por isso, sim, deu-me anos de vida.
Os seus filhos já falam de ‘politiquices’ à maneira deles?
Sim [risos]. Vamos sempre tentando ensinar-lhes uma espécie de responsabilidade e de bem comum e portanto eles vão sempre dizendo umas coisas, desde reclamarem com as pessoas que atiram lixo para o chão até as coisas que têm de ser partilhadas. Às vezes brinco com eles a dizer que a minha ideia de Esquerda é o que lhes ensinaram no jardim de infância, ou seja, a partilhar com os outros, todos terem a possibilidade de participar, discutir uns com os outros, não serem maus, não guardarem os brinquedos só para eles. Essa é a ‘politiquice’ deles [risos].
Mesmo quando as coisas parecem difíceis, vale a pena arriscar para defendermos o que entendemos ser importantes
Já lá vão mais de 40 anos de vida e metade deles foram passados na vida política. Quais são as principais lições aprendidas até aqui?
Uma das principais lições é que vale a pena arriscar. Mesmo quando as coisas parecem difíceis, vale a pena arriscar para defendermos as coisas que entendemos serem importantes.
O meu processo de saída do Bloco foi doloroso e foi uma escolha difícil porque colocava em choque duas lealdades: Uma para com as pessoas com quem trabalhei durante 15 anos e outra para com um projeto político. Isso é difícil porque escolhemos entre as pessoas ou aquilo que acreditamos ser bom para o país. Eu escolhi aquilo que achava ser bom para o país e isso é doloroso mas eu acho que é aquilo que nos permite dormir à noite e achar que não desistimos daquilo que entendemos ser importante.
Mais do que fazer parte de uma máquina que vai gerindo uma espécie de cenário político, mesmo que aquilo que estamos a dizer dentro dessa máquina seja justo e as pessoas nos deem palmadinhas nas costas a dizer ‘Gostei muito de a ouvir’, interessa respeitarmos aquilo que achamos ser necessário fazer a cada momento para transformar, de facto, as coisas. Não basta ter-se razão, é preciso mesmo querer transformar as coisas e ter lealdade a essa luta política porque muita gente lutou para que hoje tivéssemos a liberdade que temos. Acho que essa é a minha lição de vida.