Hoje à noite, ela vai estar sentada no palco do Teatro da Politécnica a responder a perguntas sucessivas sobre o crime que confessou ter cometido e para a qual não tem explicação. É a estreia de O Teatro da Amante Inglesa, peça de Marguerite Duras
O papel é difícil mas ela diz que é um trabalho e que cumpre à risca o que o encenador Jorge Silva Melo lhe diz que faça. Atriz desde que, aos 18 anos, se deslumbrou com o teatro, ela fala sem parar e com o corpo todo, com respostas por vezes desconcertantes e sempre sinceras. Diz que gosta muito de ser "velha", ou "muitíssimo crescida", mas a verdade é que nasceu em 1961 em Lisboa.
É assustador fazer um texto de Marguerite Duras?
É, será sempre.
Porquê?
Porque é difícil. Ela fala de sentimentos, de emoções, daquilo que normalmente não se diz mas sente-se, não se pensa mas faz-se. Ela vai fundo nos temas e as personagens que inventa são duras, intensas, pessoas difíceis se as conhecêssemos algum dia na realidade, pessoas que nos inspiram sentimentos, às quais não ficamos indiferentes.
Neste caso, desempenha o papel de uma mulher, Claire
Claire Amélie Bousquet Lannes, o nome completo.
Só tem mais dois atores em cena - o marido e alguém que faz perguntas mas que não sabemos bem quem é.
Não se chega a perceber. Achamos que não é polícia, porque não tem acesso às informações que foram dadas ao juiz e nos interrogatórios policiais. Pode ser escritor, um curioso ou um psicólogo, ou alguém comportamentalista que quer perceber o que se passa nas mentes dos assassinos.
A peça é baseada num crime real de uma mulher que matou o marido e o cortou em bocados.
Isso aconteceu na realidade em França, não me lembro bem dos pormenores. Para se desfazer do corpo, corta-o em bocados e vai atirando para cima dos comboios que passam no viaduto ao pé da casa dela. Vão parar bocados de corpo a todos os lados de França e a polícia percebe que o matou. Como nunca se descobriu onde está a cabeça, nem ela nunca soube dizer por que é que matou o marido e fez aquilo tudo - porque era uma pessoa sossegada, uma esposinha lá da aldeia - a história apaixonou a Marguerite Duras, aquela mente inquisitiva, curiosa. O Jorge disse-me...
... o Jorge Silva Melo, encenador...
... que ela andou 20 anos a trabalhar este texto. Escreveu um romance e uma peça que foi sempre feita pela grande Madeleine Renaud, que adorava o texto, também se apaixonou pela Claire. Andaram as duas muito tempo à volta disto. É um trabalho com uma grande responsabilidade.
Como constrói a personagem? É sempre um mistério?
A minha responsabilidade como atriz é fazer como me explica o Jorge Silva Melo. Não me dou muito direito de andar a pensar profundamente em como o irei fazer. Nunca lá chegaria. Temos de fazer com o corpo, com a voz, com o que temos cá dentro, com o que nos lembramos, com o que não nos lembramos, com o que nos impressiona. A construção é feita no ensaio, com os outros. Quando se está a passar é que se pode trabalhar. No meu caso, que não sou assim muito de pensar, é-me mais fácil fazer, ir fazendo. Não sei falar bem em termos de construção, mas sei dizer que existe sempre uma bolha onde ficamos quando estamos a viver um papel. Na minha Claire, a bolha é da pessoa que não se adapta às pessoas, ao mundo. Tem dentro dela uma imaginação enorme e uma grande necessidade de pensar, de ser inteligente, de produzir qualquer coisa com a mente, que ela faz mas não passa para fora. Na peça, ela não vai matar o marido mas a prima que foi viver lá em casa para ajudar nas tarefas. Mata a prima e parte-a aos pedaços. A que é que uma pessoa se pode encostar? O que são as pessoas? O que não são as pessoas? Que ódio temos, que ódio não temos, que amor nos faz ficar, o que temos de nós? A que cheiram as coisas? É com o corpo que eu tenho de trabalhar. É fácil para um ator pôr-se no lugar do outro, foi-nos dada essa capacidade, o nosso trabalho facilita que nós consigamos compreender um grande leque de outros. Com muito trabalho, lá nos conseguimos encaixar dentro daquele outro que esperamos que esteja certo. Neste caso não sei.
O teatro era a primeira coisa que tinha pensado fazer na vida?
Eu era para ser médica, queria ajudar os outros. Ia desde pequena acompanhar o meu pai para o hospital. Eu era enorme e gorda aos 14 anos. O meu pai trabalhava em S. José, emprestava-me uma bata que dizia "Munõz Cardoso", e eu andava nos corredores a dar água aos doentes. [o Hospital de] S. José era muito estranho, aqueles corredores, as pessoas ficavam lá muitas horas. Eu andava falando com os doentes, dando aguinha, tirava a papeleta do fundo da cama - "pai, veja lá se este pode beber água". As enfermeiras não têm tempo, têm tanta coisa a que acudir. O que eu queria fazer da vida era ajudar os outros, fazer as coisas melhores para os outros para toda a gente ficar feliz. Eu sou Balança, preciso que as pessoas à minha volta estejam felizes. Queria ser médica, depois queria ser enfermeira, porque afinal as enfermeiras estão muito mais perto dos doentes do que os médicos, que só lá passam um bocadinho. Depois queria ser obstetra, por causa dos bebés. Depois queria ser cirurgiã, porque isso é que é bonito.
Isso tudo passou-se até que idade?
Até aos 18 anos, quando uma amiga da minha mãe veio da Bretanha visitar-nos. A minha mãe estava com muito trabalho no hospital e não podia estar em casa, e eu fazia-lhe companhia. Ela agarrou em mim e levou-me ao teatro.
Que peça era, lembra-se?
Nunca mais me vou esquecer. Foram três noites seguidas, depois eu queria ir a todos os teatros do mundo. Fui à Barraca ver o Tiradentes [A Barraca conta Tiradentes, encenação de Augusto Boal, estreia de Mário Viegas, 1977, reposição em 1979]. No dia a seguir fui à Comuna ver as Guerras de Alecrim e Manjerona [António José da Silva, 1979] e depois, na mesma semana, fui à Barraca ver o D. João VI [Helder Costa, 1979]. Estavam a fazer muitas peças na mesma semana. A partir daí não quis fazer mais nada. Dizia assim: eu não sabia que se podia ser isto. Sempre adorei cinema, ia com a minha mãe, ela conhecia os atores todos. Eu achava que aquilo era um dom que alguém os escolhia lá de cima.
Que era inacessível?
Inacessível. Não era acordar e querer ser atriz. Perguntei à minha mãe: mas eu posso ser? Não sabia que se podia ser? Qualquer um pode ser?
Eram pessoas normais que ali estavam?
Eram pessoas. Posso ser? E a minha mãe: claro que podes ser, filha. Podes ser inclusive mulher a dias, mas era bom era que te esforçasses para ser a melhor mulher a dias do mundo. Foi o recado que ela me deu. Agora, com 56 anos, ela deve rir-se lá no céu: consegui ser atriz e a melhor mulher a dias do mundo, porque ninguém limpa como eu. Fiquei contente.
Como começou a ser atriz?
A minha mãe era uma pessoa muito rápida. Ah queres ser atriz? Então embora, pum: mochila, Centro Cultural de Évora, Escola de Formação de Atores.
O Cendrev?
O Cendrev, pumba, lá estou eu aterrada, aos 18 anos. O Mário Barradas era o diretor, o Luís Varela era diretor da escola, estudei com todo o elenco de Évora em 79/80/81. E foi o bem que me fizeram. Puseram-me ali, faz-te uma mulherzinha. E eu imensa, gorda, com um peito enorme, nunca me tinha despido à frente de ninguém, nem ia à ginástica em pequena porque odeio ginásticas e pavilhões, o cheiro... detesto, nunca pus o pé num ginásio nem nunca vou pôr. Despir-me à frente das pessoas? Era um pânico todos os dias, tínhamos de fazer exercícios, e a escola de Évora não é brinquedo, há muitas disciplinas de corpo, téoricas, práticas, era uma roda viva das oito da manhã às oito da noite. As minhas colegas entravam-me no camarim, despiam-me, iam comigo para o banho, obrigavam-me - e agora tens vergonha? Fizeram de mim uma mulherzinha, mesmo.
A sua mãe tinha razão?
Sempre teve.
Era a psicóloga Maria Clementina Diniz.
Psicóloga, comunista, mãe, avó. Uma força da natureza, um mulherão. E adorava Marguerite Duras, deve estar contente.
No Cendrev percebeu: não só eu posso fazer isto como faço isto bem?
Ah, não, nunca na vida.
Nem hoje pensa isso?
Nem pensar. Em limpezas sou imbatível, e para tratar de miúdos e de cães e de gatos. Para ajudar as pessoas também. Se trabalho bem? Não sei nem quero saber. Porque felizmente sou atriz dos Artistas Unidos e tenho o Jorge Silva Melo e é uma bitola boa, é altinho. E enquanto o Jorge quiser e gostar e tiver paciência para me explicar como é que se faz, para mim está certo.
Antes dos Artistas Unidos, em 1995, fez teatro?
Com os melhores, sempre. Sei que há colegas que às vezes, por falta de dinheiro, porque têm de trabalhar, fazem peças não tão engraçadas ou onde não se sintam tão orgulhosos. E eu tenho o orgulho de dizer: nunca entrei envergonhada em teatro nenhum. Foram quatro anos no Teatro de Portalegre, com o José Mascarenhas e o Manuel João Borges, meus queridos primeiros encenadores. De Portalegre vim para o Teatro da Rainha com o José Peixoto, o Fernando Mora Ramos, foi tão fixe, três anos na Rainha. Vim-me embora porque tinha sair das Caldas e fiz o Teatro do Tejo com o José Mora Ramos e a Isabel Leitão, e fui parar à Malaposta [Loures], onde fui substituir a Maria João Luís - que grande responsabilidade. Era uma feiticeira de Gil Vicente. Às tantas na minha vida eu era licenciada em Gil Vicente. Não havia uma alcoviteira, uma menina, uma velha que eu não tivesse feito. Ainda agora me lembro de textos inteiramente de cor.
O que é que o Gil Vicente tem que nos faz gostar dele?
Eu amo Gil Vicente. Não ia às aulas de Português e não tive que levar com ele. Toda a gente estudou Gil Vicente na escola e eu não me lembro. Veio o 25 de Abril e havia manifestações todos os dias. Sei que acabei o liceu no Passos Manuel mas lá de ir às aulas não me lembro muito.
O Gil Vicente foi mesmo por prazer?
É como o Almeida Garrett. Quando fizemos o Frei Luís de Sousa como exercício da escola, estava toda a gente "ai que seca" e eu a adorar aquela Madalena, nunca tinha lido aquilo.
E foi a Madalena?
Eu era a Madalena e era a Maria. Era um exercício de fim de curso e trocávamos os papéis para dar para todos. A escola tinha onze alunos.
E depois do Teatro do Tejo e da Malaposta?
Foi na Malaposta que o Jorge me viu. Onde ele diz que me viu mesmo e que gostou de me ir buscar foi no [Teatro do] Tejo. Eram as experiências que nós fazíamos. Nós inventávamos figurininhos todos feitos por mim. Amo costurinhas. Devia ter sido uma senhora casada e paga para estar em casa a costurar e a fazer coisinhas. Eu gosto é de tratar da casa. E dá muito trabalho.
Gosta de cozinhar também?
Estou um bocado chateada de cozinhar porque vivo sozinha há uns tempos e já não suporto a minha comida. Só gosto de cozinhar para as minhas filhas, para os meus netos, é mais simples. Ando a comer imensas cenas de pacote e congeladas, não sei cozinhar para mim. A minha mãe era uma grande cozinheira e a minha avó também. Na minha família, não é para me gabar, fazemos muito bem as coisas de que gostamos.
Estávamos no dia em que o Jorge Silva Melo apareceu e mudou a sua vida.
Caí de joelhos. Ele estava a escrever o António, um Rapaz de Lisboa num seminário onde toda a gente entrava, inclusive a minha colega Isabel Leitão. Foi ela que escreveu o papel que depois eu iria fazer, a Teresa. O Jorge escrevia, eu estava na Malaposta a fazer coisas com o [Teatro do] Tejo, e a Isabel também, estávamos a coser os figurinos. A Isabel ia para os ensaios do Jorge coser um pouco do vestido, eu ia no metro a coser. É assim que a gente trabalha, tem de ser, é o teatro em Portugal. Foi feita uma leitura desse texto para o público na Gulbenkian. Achei aquilo o máximo. Em Portugal, um homem que fala normal, que trata das ruas, dos jovens, da droga, de tudo o que é normal que a gente vive. Tão bom. Depois ele telefonou-me e eu pensei que era um antigo namorado meu. "Mas como é que tem o meu número?"
Era outro Jorge?
Era outro Jorge que eu tratava por você. Eu acho que você é bom para a intimidade, acho mais giro o você na intimidade.
Trata o Jorge por você?
Eu nunca tratei o Jorge por você, só mesmo nesse telefonema. Nem ele me deixaria alguma vez. Qual Jorge é que está falar? Silva Melo. E eu de joelhos, agarrada ao telefone, ai desculpe desculpe. O Silva Melo! Desde os meus 18 anos a Cornucópia era a catedral. O Luís Miguel e o Jorge Silva Melo! Um respeitinho! O Jorge Silva Melo estava a telefonar-me!
Isso foi em que ano?
Foi em 1995 ou 1996, no principinho, sou da primeira fornada
Dos Artistas Unidos?
Sim. Nunca mais o larguei. Enquanto o Jorge tiver as ideias e me chamar, enquanto ele mexer, eu estou cá.
E já fez imensas personagens.
Eu não tenho tempo de vida útil para lhe agradecer os papéis que me deu. Nem eu sabia que existiam. Deu-me os melhores papéis, é uma grande responsabilidade. Eu não sou nada de grande papeis, detesto, gosto de fazer figuração, gosto de estar no teatro a ajudar no camarim. O Jorge é que manda, não sei onde ele vai buscar paciência porque não sou fácil. Dispenso as pessoas da minha dificuldade, não quero trabalhar com mais ninguém, nunca pedi trabalho e é o que tenho mais.
Também fez cinema.
Pouco, um do Jorge [António, um Rapaz de Lisboa], outro da Solveig [Nordlund, A Filha]. Não gosto, é muito tempo à espera, ninguém percebe nada.
Não é como no teatro?
Em que me deixam ensaiar dois meses antes. No cinema nunca percebo o que estou ali a fazer, toda a gente à volta sabe muito mais e está tudo tranquilíssimo. Eu não consigo esperar, tenho de ter tudo muito rotineiro e marcadinho porque entro numa ansiedade muito grande se assim não for. Chegas ali, fazes um bocadinho, uma coisinha qualquer que alguém está a ver daquele lado, mas tu pensas que está a ver do outro. Nunca sei onde estão as câmaras nem para que servem. Daquele bocadinho que fizeste sai um bocadinho ainda mais pequenino. Há muitas que gostam, chamem-nas a elas porque eu não consigo. Eu gosto muito de ver cinema e admiro quem consegue construir assim as personagens. Não é para mim, não tenho paciência.
No palco tem aqueles medos todos?
E mais alguns, sim. Eu estou lá porque tenho de estar. Onde me sinto bem é no sofá, como toda a gente. No palco, não me sinto muito bem mas também não me sinto mal. Sei que não estou a invadir o espaço de outras pessoas ou que não estou a fazer coisas feias, desrespeitosas ou falsas. Sei que estou ali a fazer como deve ser e por isso não me sinto tão mal.
Disse que fica numa bolha. Quer dizer o quê?
A bolha é a personagem.
Está a ensaiar há dois meses, todos os dias, com o Jorge, com os outros atores, o João Meireles e o Pedro Carraca, velhos comparsas também?
Há 30 anos que representamos juntos, que estamos ali lado a lado. O Jorge Silva Melo tem a culpa, ele é que nos junta, ele é que nos põe a fervilhar. Ele tem o dom do casting. Não sei se o público que vai ao teatro percebe, mas metade do assunto está resolvido no casting. O Jorge conhece as pessoas tão bem e as personagens tão bem que - pof! - aquilo já está. Nós todos temos essa confiança. Se ele escolheu é porque está certo. E tem o dom do casting com as pessoas, não só gosta muito de atores como gosta muito de pessoas, tem muito cuidado com elas. Entre as pessoas que escolhe para os Artistas Unidos, não há gente falsa, intriguista, mesquinha. É gente de que eu gosto, que se pode estar numa companhia e não há cá teatrices e essas coisas que detesto, toda a aura e o espetáculo que se faz.
As vedetas?
Não suporto isso. Somos trabalhadores. Trabalhamos que nem uns cães, na contabilidade, nos cartazes. Fazemos tudo todos. Eu faço tão depressa assistência como um papel, também ajudo na contabilidade, nas contas.
E limpeza também, já que é uma especialista?
Limpeza não, temos a nossa Super Palmira que nunca me deixa limpar nada. O Jorge quando precisa de algumas coisas arrumadas, livros e não sei o quê, pede-me a mim. Adoro, porque gosto de tarefas assim de mão.
A bolha é a partir do momento que lhe entregam um papel? Fica nervosa?
Eu poupo-me, já sou velha. Já sei que vou ficar nervosa para o fim, não fico nervosa no princípio, era muito gasto de nervo. A bolha começa logo ali e só acaba quando o espetáculo sai de cena.
A bolha é 24 horas por dia ou só quando lá está?
A bolha é o tempo todo, infelizmente a bolha fica, fica. Eu agora até tenho dificuldade de ir aos meus netos passar o fim de semana, porque "sou" uma assassina e não tive filhos, e está a fazer-me impressão estar ao pé dos meninos.
Como se desfaz da bolha?
É como a concentração e a descontração. Consigo entrar na personagem assim, tau!, aliás qualquer um de nós consegue, é para isso que trabalhamos. Num segundo, já estou. Mas para sair, esqueçam. Fica. Visto-me, dispo-me, saio, falo, vou para casa, vou passear o cão. E continua, até sair de cena. Quando saio de cena é bom, não sou daquelas que choram e ficam com pena de aquilo ter acabado. Há espetáculos que a gente fazia toda a vida, por exemplo O Grande Dia da Batalha, em que nem sequer entrei, ah, aquilo era uma coisinha para se ir ver todos os dias, ai que lindo espetáculo esse que esteve agora no Nacional. Mas eu fazer o meu toda a vida, isso não. Já saiu, venha outro. Porque estou lá o tempo todo. A bolha defende-me do resto do mundo, deixa-me estar resguardadinha no ano de 1945 e no lugar de Viornes, é a minha bolhinha, o meu banco, o meu cimento. Depois, quando acaba, acaba. Nós sabemos quando vai ser o último espetáculo, quando não vai mais haver digressão.
O último espetáculo é diferente dos outros?
Não. Está a falar em termos de partidas que é costume fazer-se?
Não sabia que havia partidas.
É uma tradição muito velha no teatro, mas não é admitida nos Artistas Unidos. Aliás, nos Artistas Unidos, é com orgulho que digo, não é admitida nenhuma dessas parvoíces do teatro. O segundo espetáculo ser mau é completamente proibido, ninguém tem o direito de ir abaixo depois da estreia.
Que tipo de partidas se fazem?
Fazemos tudo uns aos outros desde que o público não veja. Por exemplo, tem que levar um livro: tem pelo menos um homem nu quando abre no último espetáculo, mas muito nu. Se tem umas luvinhas para enfiar pode ter preguinhos lá dentro, ou podem desaparecer coisas ou aparecer outras. Se tem uma malinha para levar, o melhor que se tem a fazer é enchê-la daquelas garras dos andaimes, daquelas coisas dos técnicos. A pessoa pega na malinha e está pesadíssima, mas o público não pode saber. São parvoíces que os atores fazem uns aos outros, maldades.
A estreia é um momento complicado?
Não, graças a deus, graças ao Jorge, não vamos agora aqui meter os deuses. Trabalha-se tanto e tão bem nos Artistas Unidos que estreamos muitos dias antes. Fazemos muitas vezes o espetáculo como ele há de ser.
E quando chegam ao dia da estreia?
Já está, não há tanto nervo, ninguém está inseguro. Ninguém estreia inseguro nos Artistas Unidos, porque o Jorge está ali a trabalhar até ao milímetro. Mesmo que falhem coisas, resolve-se lindamente porque está tudo até ao milímetro, não há pontas largadas. A estreia naquela casa é uma festa, uma brincadeira. Normalmente nos dias das estreias também inauguramos exposições...
... de artes plásticas...
... e há sempre uma vernissage, com comidinha. Ainda por cima são três dias de entrada livre, público até ao jardim. As estreias não me metem medo.
Tem noção do público, sente-o?
Claro, é só para ele que eu trabalho, não é para colegas nem para ensaios. Detesto os ensaios porque me dão imenso trabalho, nunca sei bem o que estou a fazer. Espetáculos é aquilo que está marcado, está ali para fazer todos os dias, tal e qual se combinou com o encenador e com os colegas. É para fazer aquilo para aquelas pessoas que vieram esta noite. Esta noite e esta noite e esta noite. É para eles que eu estou cá. Não sou nada de trabalhar para os amigos e de fazer espetaculinhos pequeninos. Já sou velha, posso falar assim.
Diz isso como se fosse velhíssima.
Sou muitíssimo crescida. A juventude só tem uma coisa boa, é que passa. Coitadinhos. Adoro ser velha.
O público é todos os dias diferente?
Sim, mas eu não vejo, não estou como o Carraca que sabe que a senhora tinha um lenço não sei quê. Eu não vejo nada, para mim aquilo é um buraco escuro.
O Pedro Carraca observa o público?
O Pedro não observa o público, está em cena como nós, só que tem um dom, uma capacidade de resolver confusões dentro e fora de cena, e nunca sai do papel e nunca se perde. Ter o Carraca em cena é género Miguel Borges, é maravilhoso. Ele consegue segurar aquilo tudo, voltar e estar ali. Consegue estar a representar e quando está a olhar consegue ver. Além de aquilo ser escuro e eu ver um pouco mal, eu estou a olhar mas não estou a ver a cara, é preferível que não veja. Mas sinto-os, oiço-os respirar, tossir, brincar com os telemóveis.
E continuam a tocar telemóveis?
Ah sim, se tocam telemóveis! E depois uma pessoa fica numa sala de 60 lugares, naquela do "se eu não mexer ninguém sabe que é meu", e aquilo a tocar. É mesmo estranho.
E quando as pessoas têm uma reação que não é a que se espera, por exemplo, não é uma coisa para rir e há pessoas a rir?
Acontece, acontece. No primeiro segundo fico ofendida, mas depois vejo que a pessoa percebeu assim, olha que giro, outra maneira de reagir. É uma coisa muito rápida. O público não é burro, e se uma pessoa achou graça àquilo e a outra vomitou, para mim está bom. Sou tão defensora das sensações, dos sentimentos, também os outros têm que o ser. É isso que é bom no público, é muito bom toda a gente ser diferente e por outros motivos. Sei lá, ele pode estar a rir-se não do que eu disse mas de ter caído um sapato lá atrás.
Ou pode rir porque a situação o leva um extremo e ele não sabe resolver?
Exatamente. Mas nada do que o público faça ou reaja me distrai ou me ofende ou me magoa.
Continua na sua bolha?
A bolha está lá mas é para eles. Fico ofendida quando as pessoas brincam com os telemóveis ou estão a fazer barulho ou coisas que não são normais num teatro. Fico mesmo escandalizada. Como é possível? Não ficam em casa porquê? Está lá o sofá.
Continua a ser um prazer, o teatro?
Eu sinto-me muito orgulhosa por gostar daquilo que faço mas digamos que eu não faço o que gosto, eu gosto do que faço. Seja contínua, que já fui...
Houve uma altura em que deixou o teatro?
Estava chateada, achava que o meu papel era ajudar mais profundamente do que estar a entreter intelectuais de esquerda em Lisboa. Foi o que eu senti, para dizer a verdade.
Isso foi antes de o Jorge Silva Melo a apanhar?
Não, foi no meio do Jorge Silva Melo, em 2005. Estávamos nós todos no [Teatro] Taborda e eu às tantas salta-me a tampa e disse não. Há aqui muita gente que quer representar e eu tanto represento como limpo como faço outra coisa qualquer. Já trabalhei em restaurantes, em clubes de vídeo, em todo o lado onde há um emprego eu vou, não me custa.
E foi para fora de Lisboa?
Fui para Portalegre, para o Alentejo.
Com as filhas?
Com a minha pequenina, a grande já lá estava a fazer o estágio. A minha grande nasceu lá, quando trabalhei no Teatro de Portalegre. Tive logo a minha primeira filha porque, claro, uma atriz não pode... é um ano de barrigão em que não se pode trabalhar. Elas têm uma diferença muito grande, tenho duas filhas únicas como dizia a minha mãe. Têm uma diferença de onze anos uma da outra. Ou se trabalha ou se tem filhos, a minha vida não dá. E eu quis ter logo uma, aos 21 anos nasceu a minha Ana Bárbara que é o meu orgulho, uma criatura de 34 anos que saiu à avó e à mãezinha, também só quer ajudar os outros. Trabalha na Câmara de Peniche como orientadora profissional. Enfim, põe as pessoas a trabalhar e a escolher coisas boas para fazer.
A Isabel não faz o que gosta mas gosta do que faz?
Exatamente, faça o que fizer. Estar a trabalhar como atriz, se puder trabalhar nos Artistas Unidos com o Jorge Silva Melo e as pessoas em que acredito, confio, admiro e sou fã, tudo bem. Fora disso não, não me interessa fazer teatro algum, nem cinema algum, aliás não me interessa fazer nada, como já lhe disse. Sou velha, quero mais é estar em casa a tomar conta dos netos. Mas os Artistas Unidos existem e a minha profissão é esta, e eu tenho todo o orgulho em a fazer, com todas as minhas forças e o melhor que sei. Mas se por acaso fosse contínua como já fui - é tão giro ser contínua numa escola primária - também era com todo o meu orgulho, todo o meu dia era dedicado. Só que como contínua a gente não leva tanto trabalho para casa.
Aí não precisa de ter a bolha?
Não há bolha.
Isto é mais intenso?
A bolha é mesmo para a gente poder sobreviver, acho eu.
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