Irene Martín, de 22 anos, está em Portugal desde fevereiro deste ano para estudar. No 1.º de Maio saiu à rua e escreveu um cartaz, para fazer parte das manifestações do Dia do Trabalhador. A mensagem, um apelo à discussão do trabalho reprodutivo, ganhou tração nas redes sociais, e representação nas notícias, mas não pelo conteúdo, antes pela forma
"Farta até à cona [coño em castelhano] de gerar a mais-valia dos homens. Trabalho reprodutivo sustenta o capital", podia ler-se no pedaço de cartão empunhado pela estudante espanhola. A imagem captou interesse e acabou por ser muito partilhada e ainda mais comentada, espoletando uma série de reações menos positivas para a autora.
Irene, ainda assim, não esmorece e continua a usar a plataforma de que dispõe, o Twitter, para criar discussão sobre o tema. Em conversa com o Notícias ao Minuto, lamentou a "quantidade assustadora" de insultos de que foi alvo, explicou o porquê da utilização do vernáculo e vaticinou sobre as origens de toda esta polémica. Recordando o movimento espanhol 'Cuéntalo', razão pela qual denunciou online a abordagem de um jornalista português, e até o caso da jornalista portuguesa Fernanda Câncio, Irene chamou a atenção para a perpetuação de estereótipos de género e para o efeito que estes têm no mercado de trabalho. Parece que se atribui o ónus da responsabilidade às mulheres, porque o fazemos por amor. Há uma frase que diz: “Isso a que chamam amor é trabalho não pago”Qual era a mensagem que queria passar, quando decidiu levar aquele cartaz para a manifestação?
Para mim, este cartaz significa que estou farta de gerar as mais-valias dos homens, porque o trabalho reprodutivo sustenta o capital. Que quer isto dizer? Um trabalho reprodutivo são todas as tarefas e atividades que são necessárias para a reprodução e mantimento da força de trabalho. Nascimento de uma criança, período de lactação, portanto, todas as atividades que precisam de ser feitas para que o trabalhador volte no dia seguinte ao seu posto. Aqui também se inclui cuidado emocional, alimentação, etc. Todas estas tarefas, que são necessárias para que nos mantenhamos ativos social e economicamente, são levadas a cabo, maioritariamente, por mulheres. São as mulheres que estão por trás de todos estes trabalhos, fazendo com que os homens tenham a capacidade para trabalhar num sistema capitalista. E isto é um trabalho, não são atividades pessoais, de ócio ou de escolha, são atividades necessárias para a reprodução.
O que acontece é que, atualmente, no sistema capitalista, são atividades que são coladas, estritamente ao âmbito individual ou doméstico, digamos, passando a ideia de que são escolhas individuais ao invés de um trabalho.
E é por isso que eu queria dizer que este trabalho, tão silenciado, não pago, desvalorizado, é necessário para que o homem possa voltar no dia seguinte ao posto de trabalho para trabalhar. Queria que este trabalho fosse visto de forma coletiva e não de forma individual e que os sindicatos e os partidos falassem disto.
Acredita que a perpetuação do estereótipo da mulher como cuidadora agrava o fosso entre homens e mulheres no local de trabalho?
Sim, claro. Parece que se atribui o ónus da responsabilidade às mulheres, porque o fazemos por amor. Há uma frase de Silvia Federici [escritora e ativista italo-americana] que diz: “Isso a que chamam amor é trabalho não pago”.
Recebi uma quantidade de insultos que me deixou assustada porque é de uma brutalidade incrívelRecebeu muitos insultos e abuso online por causa do cartaz? Como encarou essas reações?
Bem, recebi uma quantidade de insultos que, em boa verdade, me deixou assustada porque é de uma brutalidade incrível. São insultos que acontecem porque os homens acham que as mulheres são inferiores, que temos de ser submissas e estar caladas. Quando uma mulher se ergue, aproveita um espaço para falar, as pessoas incomodam-se e respondem com desdém, desprezo e faltas de respeito.
Acho incrível a extrema leviandade com que as pessoas falam, por exemplo, do meu corpo, da minha sexualidade, com conceitos que não são normativos. Isso advém do facto de as mulheres serem percecionadas como acessórios da masculinidade dos homens e como objetos decorativos. Sentem-se, portanto, com legitimidade para nos envergonhar com a nossa sexualidade, com o nosso corpo e para nos castigar com todo o aparelho de ódio misógino. Não se trata de discordar de uma ideologia política, são insultos gratuitos, para infantilizar, 'analfabeta', 'idiota', 'inculta'… Tudo bem que o cartaz tinha um erro ortográfico, é certo, mas eu estou há um par de meses em Portugal.
A palavra ‘coño’ é muito utilizada em espanhol. É uma palavra da qual temos de nos apropriarO uso do palavrão também é muito mencionado. Acredita que pode ser resultado de estereótipo de género, ou seja, que se fosse um homem a segurar o cartaz seria diferente?
Absolutamente, sempre, sempre. As mulheres têm de ser submissas e caladas. A palavra ‘coño’ [em português, cona], no entanto, é muito utilizada em espanhol. É uma palavra da qual temos de nos apropriar porque é uma palavra que até hoje é extensivamente utilizada pelos homens para nos envergonhar, para nos fazer sentir mal com a nossa sexualidade. Apropriam-se de tudo, desde a palavra até à nossa sexualidade. É importante que nos voltemos a apropriar [da palavra ‘coño’]. Já disse numa entrevista que eu uso a palavra ‘coño’ na rua como um ato político.
Sobre as críticas feitas ao seu corpo e à sua sexualidade, acredita que são discussões nascidas da intenção de menorizar a sua mensagem?
É uma maneira de degradar o feminismo. O feminismo tem sido muito perseguido ultimamente porque ninguém gosta de ficar sem os seus privilégios. Atos como reduzir as mulheres a corpos, ou dizer que estou furiosa porque sou gorda… Por trás do feminismo há um processo muito importante de construção, de reflexão e de estudo, mas para os homens é mais fácil dizer que está gorda. (…) Nenhum homem receberia insultos como eu recebi, por estar gordo, ninguém tiraria validade à sua opinião. Quando muito, insultos homofóbicos, apenas pelo facto de que para os homens ser homossexual é uma falta de masculinidade.
Fernanda Câncio é uma mulher que tem uma carreira espetacular e reduzem-na, atacam-na, por ser a 'mulher de'É mais eficiente diminuir o assunto diminuindo a pessoa…
Sim, por exemplo, todo este tema com a Fernanda Câncio [jornalista e colunista do Diário de Notícias]... Ela já interagiu comigo pelo Twitter, deu-me apoio. Ela está continuamente a ser reduzida à amante, à ex-companheira, quando é uma pessoa que tem uma carreira muito importante no jornalismo português. É uma mulher que tem uma carreira espetacular e reduzem-na, atacam-na, por ser a 'mulher de'. Há aqui muito trabalho a ser feito. Acredita que a abordagem feita por um jornalista português, que a Irene expôs no Twitter, se relaciona com esta discussão? Eu tornei esse assunto público porque em Espanha há movimento muito importante, o movimento ‘Cuéntalo’ [conta ou denuncia, em português], para que as mulheres digam aquilo por que passam. Gostava muito que este movimento chegasse a Portugal.
A história do jornalista expliquei-a sem intenção de ofender ninguém em particular. Contei-a porque acredito que não é um caso isolado, são situações que acontecem todos os dias. Não é por ser um jornalista, ou um músico importante, ou um realizador de cinema, ou um executivo. São casos de pessoas que se aproveitam do seu poder, de alguma forma, para criar injustiças contra as mulheres. Não vou apresentar queixa, de forma alguma, porque não acho que seja o caso…
Acha que a abordagem não estava a ser séria?
Sim, acredito, claramente. Todas temos valor intelectual, e é reduzido ao nosso corpo. Isso acontece a todas as mulheres, jovens, adultas... Eu não quero criminalizar uma pessoa, quero denunciar um comportamento. Quero que as raparigas que leiam aquilo e se identifiquem saibam que aquilo é um comportamento errado e que o digam.