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POESIA E MÚSICA DA RESISTÊNCIA

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22
Mai18

A TEMPERATURA DO NOSSO CORPO - A crença dos 37 graus, ou por que continuamos a medir a febre de forma equivocada?

António Garrochinho
Qual é a temperatura corporal que deve ser considerada febril? Praticamente todos respondemos a esta pergunta com 37 graus Celsius. Os mais versados murmuram que é verdade que pode variar, mas que esse valor é o limite inferior da febre. Mas e se alguém dissesse que não é bem assim? Resulta cientificamente arriscado estabelecer uma temperatura média universal como a correta para todas as pessoas. A temperatura normal varia de um indivíduo a outro em função do sexo, procedência geográfica ou a idade. Sério!


A crença dos 37 graus, ou por que continuamos a medir a febre de forma equivocada?
Para arrematar, a temperatura de uma pessoa varia sutilmente em função da hora do dia. A mínimo tem lugar às 6 da manhã, e a máxima ronda a primeira hora da tarde. Outros processos biológicos normais como a menstruação alteram também a temperatura sem que possa ser considerada uma patologia propriamente dita.

Inclusive aceitando todas estas variáveis, a temperatura média do ser humano não é de 37 graus Celsius, senão de 36,7. Se falarmos de febre, a temperatura que deveríamos considerar é desde 37,1 pela manhã, e desde 37,7 pela tarde. De onde têm saíram todas estas medidas? Por que temos valores como 36,5 graus para definir uma temperatura normal e 37 para a febre?

A resposta a essa pergunta remonta-se a 1851. Nesse ano, um médico do Hospital de Leipzig, chamado Carl Wunderlich, começou a passear pelos corredores do centro com um estranho dispositivo sob o braço. O aparelho, um cano de cristal de 40 centímetros, era o primeiro termômetro médico da história. Wunderlich e seus auxiliares passaram anos medindo a temperatura dos pacientes do hospital. Não foi trabalho pequeno tendo em conta que seu rudimentar termômetro demorava 20 minutos para mostrar uma leitura. Os pacientes deviam mantê-lo durante esse tempo sob a axila.
A crença dos 37 graus, ou por que continuamos a medir a febre de forma equivocada?
O termômetro de Wunderlich ainda é conservado em um museu.
Nos anos sucessivos obtiveram milhões de medidas a mais de 25.000 pacientes e em 1868, Wunderlich publicou "Das Verhalten der Eigenwarme in Krankheiten" ("Sobre a temperatura das doenças: Manual de termometria medica"). O estudo fixava a temperatura corporal normal a partir da qual podemos falar de febre em 37 graus e foi tão revolucionário que ninguém discutiu o assunto durante 140 anos.

Wunderlich tem o mérito de ter sido o primeiro em medir a temperatura corporal de maneira tão exaustiva. Também foi o primeiro em formular a teoria (totalmente correta) de que a febre é um sintoma de certas doenças e não sua causa. Não obstante, os meios tecnológicos da época não eram tão precisos como os de agora, e em nos anos 90 um professor de medicina da Universidade de Maryland, chamado Philip Mackowiak, decidiu comprovar os achados do alemão.
A crença dos 37 graus, ou por que continuamos a medir a febre de forma equivocada?
O que Mackowiak descobriu é que o termômetro de Wunderlich media um pouco acima dos atuais e que ademais a maneira que era utilizado não era muito fiável. É mais preciso medir a temperatura na boca ou no reto que na axila, ainda que é lógico entender porque o médico alemão optou pela axila e não pelo reto considerando o tempo de medida e que passou por mais de 25.00 pacientes.

As medidas de Mackowiak são consideradas corretas. No entanto, já passaram mais de 25 anos e seguimos agarrando ao tópico dos 37 graus. Por que? Provavelmente porque apenas um valor universal é mais fácil de recordar que várias que alteram ao longo do dia. A distorção conhecida como "perseverança das crenças" também nos leva a seguir crendo em coisas ainda que no fundo saibamos que não são corretas. O próprio Mackowiak resumiu isso melhor que ninguém:

- "As pessoas querem respostas simples!"
Fonte: Frekonomics.


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22
Mai18

A EXPERIÊNCIA Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano

António Garrochinho
Muito antes que as redes TV descobrissem o filão e suposto estudo sociológico do Big Brother e restantes realities, a princípio dos 70 a ciência realizou um experimento de similares características em alto mar. A ideia: uma pequena embarcação com 11 desconhecidos devia cruzar o Atlântico. Uma viagem que buscava teorizar sobre as condutas e a violência entre um grupo de pessoas expostas a uma situação limite. Um experimento que a imprensa sensacionalista decidiu chamar de "barco do sexo" ou "barco do amor".


A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Por trás desta singular "aventura" se encontrava o antropólogo e pesquisador social Santiago Genovês e a proposta partia de sua própria experiência. Santiago saiu da Espanha junto a sua família quando adolescente (ao acabar a Guerra Civil Espanhola). Seu destino foi o México depois de uma prévia passagem pela França.

Ele se formou na Escola Nacional de Antropologia e obteve um doutorado em Cambridge, no Reino Unido, sendo pesquisador emérito da UNAM depois de sua aposentadoria. Santiago morreu em 5 de setembro do 2013 com grandes contribuições científicas, sobretudo no campo sociológico do comportamento humano.

Três viagens marcaram sua carreira. Três cenários onde ele mesmo esteve implicado. Os dois primeiros foram barcos construídos com palha de papiro, RA 1 e RA 2. Duas viagens em 1969 e 1970 respectivamente onde fez parte da tripulação dirigida por seu amigo o antropólogo e navegador norueguês Thor Heyerdahl, que queria utilizar estas expedições para corroborar suas teorias sobre as viagens épicas feitas pelos povos primitivos. Heyerdahl tinha fixado como objetivo verificar a possibilidade de travessias transatlânticas antes da viagem de Cristóvão Colombo.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago e Heyerdahl no RA.
Conquanto Santiago compartilhava o interesse pelo trabalho de Heyerdahl, para o antropólogo estas viagens foram o começo de sua grande aventura. Ele acabou descobrindo durante as travessias que este tipo de viagens podia ser um perfeito laboratório do comportamento humano. E talvez, mais importante, Santiago tenha aprendido em ambas as  embarcações o que provavelmente a maioria dos marinheiros sabe desde tempos imemoriais: que não há melhor banco de provas para o estudo de nosso comportamento do que permanecer em alto mar sem possibilidade de pisar a terra.

Assim começava o Experimento Acali: 11 perfeitos estranhos deviam partir e cruzar o Atlântico desde as Ilhas Canárias até Cozumel, no México. O que podia dar errado?
Hora de partir
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago tinha tudo preparado em 13 de maio de 1973. Nesse dia zarparam do Porto da Luz em Las Palmas, Grande Canária, 11 pessoas (de dez nacionalidades diferentes) procedentes de 4 continentes onde faltava unicamente a Oceania. A equipe era composta por uma mulher sueca, uma médica judia, um fotógrafo japonês, um restaurador grego, um padre angolano, uma norte-americana branca, uma afro-americana, uma mulher árabe da Argélia, um uruguaio, uma francesa e o próprio Santiago.

O barco, chamado Acali (que no idioma nahuatl significa "casa na água"), transportava cinco toneladas entre alimentos e água e foi construído pelo antropólogo com 12 metros de comprimento por 7 metros de largura. Uma pequena embarcação impulsionada unicamente por uma vela e que tinha somente uma diminuta cabine em que dormiriam e compartilhariam espaço (media 4 x 4 metros). A cabine também tinha pequenos armários para guardar roupa. Por diante, toda uma travessia sem possibilidade de parar em terra para cruzar o Oceano Atlântico com destino ao México.

De modo que podemos imaginar essa primeira cena do Porto da Luz. As primeiras apresentações, talvez as primeiras impressões negativas (ou positivas) ou talvez os primeiros sintomas de conexão entre eles sobre uma embarcação que poderia se tornar um verdadeiro cortiço.

Santiago sabia desde o princípio que não existiria uma coexistência harmoniosa, ao menos assim ficou refletido em seu livro e essa foi a razão da escolha dos voluntários da viagem. Em outras palavras, o homem decidiu em função do que ele pensou que seria uma mistura explosiva. Por essa razão a primeira coisa que fez foi nomear deliberadamente às mulheres as duas funções mais importantes a bordo: o capitão (a mulher sueca) e o médico a bordo (a doutora judia). Da mesma forma, também teve cuidado de garantir o maior número possível de participantes casados (se tinham filhos ainda melhor) junto a uma grande variedade de raças e religiões que fossem representadas.

Esse 13 de maio e pouco antes de zarpar, o antropólogo informou os arranjos para dormir na cabine, que estavam divididas em duas linhas de liteiras de forma que tanto homens como mulheres estivessem misturados.
O começo da aventura no barco do sexo
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
A cabine do Acali.
A viagem durou ao todo 101 dias, tempo suficiente para que Santiago preenchesse mais de mil páginas com as observações da vida a bordo. Não só isso, durante o mesmo os participantes responderam 46 questionários dos quais obteve um total de 8.079 respostas sobre temas tão diversos como as próprias relações a bordo, o comportamento sexual de cada um, a religião, violência ou questões sobre a moralidade de cada um.

O antropólogo narrou como foi o início titubeante do grupo, um começo onde as pessoas estavam um tanto reticentes e onde todo mundo se manteve em alerta. Em qualquer caso e o mais provável, era um sinal de que ninguém queria baixar suas defesas e revelar qualquer possível debilidade.

A primeira inibição logo esquecida foi a renúncia da tripulação a usar o banheiro ao ar livre. Sim, Santiago construíu uma pequena plataforma anexada ao barco, onde todos deviam fazer suas necessidades à vista do restante dos colegas. Nos primeiros dias discutiram muito sobre a necessidade dessa privacidade, que duas semanas mais tarde desapareceu. Depois de 14 dias era possível ver como dois membros da equipe conversavam tranquilamente enquanto um deles (homem ou mulher) realizava sua imperiosa necessidade de dar uma bela "cagada" sem nenhum pudor.

Logo chegou o primeiro atrito a bordo em função do sistema criado para a rotação de trabalhos. Ao que parece, Ingrid, a sueca e capitã do barco, era muito autoritária, segundo o grupo, em ocasiões com um tom violento que deixava muitos membros do Acali à flor da pele. Rachida, a argelina, também entrou em conflito com o restante dos colegas já que evitava a maioria de seus deveres. Por esta razão foi apelidada como "a turista".

Em geral foi uma fase em que quase todos se irritavam também com Zanotti, a francesa, que era acusada de passar o dia inteiro emperequetando-se, razão pela qual começava a realizar suas tarefas uma hora mais tarde. Por sua vez o padre, segundo o grupo, era o membro do qual viviam tentando fugir. Um homem descrito por seu penetrante fedor constante e insuportável. Neste caso Santiago contou que acabou obrigando o homem a tomar banho três vezes ao dia.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Os membros da tripulação do Acali.
Depois deste primeiro período o antropólogo perguntou-se pela quantidade de sexo que estava acontecendo no barco. Ele acabou se guiando pelo que tinha visto, não muito. Segundo contaria mais tarde sobre o processo de fases pelas quais passaram os membros:

- "Alguns deles se encontravam nas primeiras semanas com frequentes episódios de enjoos e vômitos o tempo todo. Por isso suponho que não era muito atrativo a ideia de fazer sexo."

Segundo contaria anos depois, o uruguaio e membro do grupo José Maria Montero:

- "Exceto Santiago, eu, e a sueca, nenhum dos participantes tinha experiência com o mar nem tinha navegado antes. De maneira que primeiro tiveram que padecer uma adaptação física ao meio marinho. Quatro ou cinco ficaram nauseados durante várias semanas."

Se tivesse que apostar nesse momento pela chegada do cupido, Santiago apostava pelo fotógrafo japonês Yamaki e a americana Mary. Ambos tinham se mostrado muito próximos desde o começo e com uma grande conexão, ademais uma das noites parece que tinha surgido a "faísca do amor" entre ambos no interior da pequena cabine.

Curioso, porque o primeiro que teve certeza da aproximação foi sobre ele mesmo. Santiago logo ficou muito íntimo de Zanotti. E um mês depois registraria em seu diário o seguinte:

- "Começávamos a ter um sentido liberal e saudável da relação, mas em última instância, era um lugar vazio de camaradagem o que estávamos desenvolvendo a bordo."

Os questionários iam acompanhando os dias. Assim, quando chegou o quinto teste causou um grande reboliço. O mesmo incluía perguntas tais como: "O que mais te incomoda sobre a vida a bordo?, "De quem você mais gosta e quem menos?", "Gostaria de mudar a ordem das liteiras?", "Se sim, quem gostarias que dormisse ao seu lado?", "Se não tivesse inibições, com quem acha que poderia dormir?"

Nem é preciso dizer que, ante estas perguntas, a tripulação ficou desejosa por saber o que o restante tinha respondido. Ocorreu que depois de revelar os resultados fizeram um novo arranjo para dormir nas liteiras. Outra vez todos juntos, mas sob uma disposição diferente.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
O Banheiro do Acali.
Chegado o 13 de julho, aconteceu um acidente. Uma das pás do timão do Acali se desprendeu. Estavam em alto mar, de modo que as probabilidades de encontrar tubarões eram altas. Santiago não duvidou e saltou para inspecionar os danos e foi justo nesse momento e a partir da perspectiva oferecida pela situação, que o antropólogo observou que todos tinham assumido seu papel e sabiam perfeitamente o que fazer. Como ele mesmo escreveria, não há nada como sentir a ameaça do perigo para que surja o espírito de equipe em uma tripulação. Finalmente e depois de uma árdua luta conseguiram arrumar o timão.

Várias semanas após o incidente Ingrid propôs um primeiro jogo que "saltava" as regras "não escritas" que tinham tido até então. Adivinham qual? O chamado "jogo da verdade". Cada um devia fazer a uma pessoa de sua escolha quatro perguntas por escrito, questões que mais tarde deviam ser lidas e respondidas de forma anônima em frente a todo o grupo. Um exemplo disso: para Santiago perguntaram:

- "Quando você está em uma de suas expedições, acha que tua mulher tem relações extra-matrimoniais?"

A resposta do antropólogo foi que não, ou que em qualquer caso não cria, ainda que respondeu que é algo que não podia saber certamente. Em geral este foi o tipo de perguntas que realizaram, a maioria mais diretas, como ao uruguaio, ao qual perguntaram se gostaria de dormir com uma mulher da tripulação, que respondeu que se realmente ela quisesse "não diria que não". Também existiram perguntas mais violentas para a personalidade de cada um. Por exemplo o restaurador grego foi desafiado com um: "Como você consegue ser tão duas caras?" Ao que respondeu que não achava que era assim.

Passaram os dias e depois de mais de dois meses a bordo do Acali, Santiago mudou o plano tentando usar perguntas mais impactantes para averiguar como reagiriam os participantes a uma infração deliberada contra o grupo. Desta forma passou a votar as seguintes questões:
  • Que tal passarmos um dia inteiro nus? O resultado foi de seis votos a favor e cinco contra.
  • Que tal mantermos uma espécie de festa contínua onde todos podem dormir com todos? O resultado foi de quatro votos a favor, sete contra.
  • Deveríamos proibir a formação de casais? O resultado foi de dois votos a favor, seis contra (e três abstenções).
Quando chegou à 13ª semana em alto mar, as duas americanas tiveram uma nova ideia que ultrapassava como nunca os "limites". Sugeriram que durante um período de cinco noites, um homem e uma mulher receberiam a permissão do resto do grupo para que ficassem a sós no interior da cabine durante uma hora. A resposta do resto? Recusaram a proposta, mas Santiago advertiu e se deu conta da necessidade do grupo para passar tempo entre grupos menores ou inclusive entre casais, de modo que propôs que cinco casais extraídos a esmo deviam ter a oportunidade de se reunir em cinco lugares do barco onde não podiam ser vistos pelo resto.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Santiago no Acali.
O que ocorreu? O estado de humor do grupo melhorou sensivelmente ante a proposta. Depois das atribuições chegaram as primeiras fofocas e comentários insinuantes sobre os casais e de quem estava comendo quem. O barco tinha se convertido em um Big Brother televisivo (e tudo o que isso implica).

O que passou a partir de então foi uma série de acontecimentos muito rápidos e significantes para o grupo. O fotógrafo japonês tentou saltar no mar porque, segundo explicava, odiava as fotos que tinha feito e achava difícil seguir adiante com os demais. Na verdade, o que ocorreu é que levou um fora de sua "amante" Mary. Aproximadamente na mesma data, um cargueiro esteve a ponto de investir contra o Acali. Foi também nessa mesma época que Santiago teve apendicite. Um cúmulo de adversidades para o grupo que, como em outras situações de crises anteriores, se concentrou uma vez mais em agir como uma equipe.

Finalmente a apendicite de Santiago cedeu e duas semanas mais tarde o Acali entrou na ilha de Cozumel. Ali cada pessoa foi isolada em quarentena do resto e vigiados em um hotel para que não saíssem. Durante uma semana foram submetidos a uma série de testes com psiquiatras, psicólogos e médicos.
A história do experimento Acali: 11 desconhecidos cruzando o Atlântico às entranhas do comportamento humano
Os tripulantes fazendo uma refeição.
Estes estudos depois da viagem não deram nenhum resultado considerável, ao contrário do que pensava Santiago. Em seu livro "Acali", publicado em 1975, o antropólogo interpretou tudo o que ocorreu a bordo de uma maneira que encaixava com sua própria visão do mundo. A bordo do barco disse que tinha encontrado um "homem novo", "livre de ambições territoriais e de impulsos agressivos ou sádicos". Segundo Santiago:
Os objetivos foram alcançados. Regressamos com muitas esperanças de ter contribuído humildemente ao estudo do comportamento humano. O mar é belo, mas a terra pode também o ser se nos empenharmos nisso. Para consegui-lo é necessário que cada qual faça esforços para um melhor entendimento a todos os níveis. Há que determinar as causas que provocam a violência humana. Faz cinquenta anos, morria um homem cada minuto, vítima da violência de seus semelhantes. Mas hoje em dia morre um homem a cada vinte segundos pela mesma razão. Estamos muito contentes de conservar a vida!
Quanto a sexualidade, Santiago chegou à seguinte conclusão:

- "Não há desejo sexual inato que possa explicar suficientemente o impulso irresistível que, ao que parece, temos de formar relações sexuais."

Segundo contou anos depois Jose Maria Montero, o uruguaio, sobre o mesmo tema:
A vida sexual nesse ambiente tão promiscuo não foi o que a gente imaginou. Foi pobre e escassa. Qualquer um que tenha navegado sabe o que significa andar em uma barco tão frágil impulsionado por uma vela. Permanentemente estão rompendo coisas e não há tempo para pensar na vida sexual; há que respeitar as devidas debilidades e a intimidade quase não existe. Tudo isso é inibidor para a vida sexual. Ademais, todos tínhamos que fazer nossas necessidades em um espaço aberto que tinha sobre uma borda, à vista de todo mundo, e ninguém se importava.
O experimento não passou sem críticas de colegas de profissão do antropólogo. Para muitos era pouco ético ter conseguido de todos os participantes uma assinatura de compromisso de antemão que lhe dava direito a fazer uso dos dados que surgiram na travessia (inclusive dados e informação de natureza íntima). Irônico e diria que até um ponto inocente observando o que hoje estão dispostos a aceitar muitas pessoas que fazem fila para aparecer na televisão de bunda de fora.

A verdade é que Santiago não usou os nomes reais dos participantes, ainda que obviamente eram facilmente reconhecíveis (ademais os jornais sim revelaram nomes). O homem relatou seu experimento como uma importante contribuição ao comportamento e convivência humanos. Seu livro deu fé disso, enquanto os diários se dedicaram a contar aquilo que não aconteceu. Os jornais foram precisamente os que apelidaram o Experimento Acali de "barco do sexo". Inventaram histórias entre os participantes buscando o componente sensacionalista do ocorrido para vender a travessia ao público.

Ironias do destino, essa primeira tentativa da imprensa para aprofundar no mesquinho acima de uma boa história, com o tempo, se tornou uma profecia. Várias décadas depois algum produtor maluco de uma rede de TV recolheria os testemunhos dos meios desse curioso experimento realizado a bordo do Acali. Assim começava a longa lista dos chamados reality shows onde a miséria se pagava a preço de ouro. Nasciam o infame Big Brother e seus suplentes.
 Faro de Vigo.


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22
Mai18

Roger Waters na Altice Arena: Os Porcos não triunfarão

António Garrochinho







Duas horas e meia de música, três de espetáculo. Para o primeiro de dois concertos que dará na Altice Arena, Roger Waters não esqueceu quase nenhum dos temas que o tornaram num gigante – e ainda conseguiu apresentar algumas canções do seu primeiro álbum em 25 anos. Pelo meio, mensagens duras anti-sistema e dois alvos específicos: Donald Trump e o estado de Israel. E a vontade de que os porcos não triunfem.

Por mais que o tempo passe, há sempre artistas cuja teimosia os impede de serem esquecidos. Bem: “teimosia” é capaz de não ser a palavra certa. Experimentemos “perseverança”, “talento” ou “atitude”. Embora “teimosia” também possa ser aplicada a Roger Waters, baixista que durante anos foi a alma e os versos dos Pink Floyd – pese embora o fantástico contributo dos seus antigos colegas – e que a solo conseguiu construir um corpus de trabalho que, mesmo não sendo icónico, é notável: The Pros and Cons of Hitch Hiking (1984), Radio K.A.O.S. (1987), Amused to Death (1992), a ópera Ça Ira (2005) e, mais recentemente, Is This the Life We Really Want? (2017), álbum que pôs fim a uma longa espera de 25 anos sem ouvirmos canções novas do músico britânico.







Não que tal fosse estritamente necessário. O próprio Roger Waters sabe-lo; a grande maioria do alinhamento desta digressão consiste em canções dos Pink Floyd (e o próprio nome da digressão, Us + Them, vai buscar esse título à ex-banda), e são dos Pink Floyd muitas das t-shirts que o público que enche a Altice Arena, em noite de primavera, enverga orgulhosamente e sem qualquer espécie de pudor. Essa banda, enquanto entidade, pode já não existir, nem nunca mais voltar a existir, rejeitando a ideia de “reunião” tão em voga nos últimos anos e seguida por outros “dinossauros” do rock. Mas existirão, enquanto houver humanidade, as suas canções, da mesma maneira que as obras de Bach, Beethoven, Mozart ou Vivaldi ou as composições de Louis Armstrong e George Gershwin resistirão aos séculos.


E o que também existe, infelizmente, é a guerra – a mesma guerra que continua a fazer com que os Pink Floyd, ou qualquer outra banda anti-sistema e pró-coração, continuem a soar-nos tão relevantes hoje como há cinquenta anos. Waters conhece certamente os seus horrores, tendo o seu pai falecido em combate durante a II Grande Guerra. Conhece-os ao ponto de não se manter calado, e ainda bem, em relação às atrocidades que todos os dias captamos na televisão, na rádio ou na internet, sendo que a violência du jour chega-nos do Médio Oriente, região envolvida numa das mais brutais guerras de que há memória há já demasiadas décadas.







Essa sua voz tem-lhe valido vários dissabores, tanto por parte dos senhores da guerra como dos que a justificam. E até de outros músicos: a sua ligação à campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que apoia um boicote total ao estado de Israel, já lhe valeu vários bate-bocas com artistas que, mais ou menos indiferentes ao que se passa em Gaza, insistem em atuar naquele país. Cabe a cada qual decidir, por si só, se Waters está errado ou não na sua luta; mas não há como não elogiar um homem que se mantém fiel aos seus princípios e que os defende com garras afiadas, as mesmas que usa para fazer tremer as cordas do seu baixo e, com ele, multidões de todo o mundo.

Foi preciso, no entanto, esperar vinte minutos para que o pudéssemos ouvir, a Roger Waters e ao seu instrumento. Antes disso, o público foi brindado com uma curta-metragem em que uma jovem de lenço na cabeça, sentada nas dunas e pensativa como se estivesse num divã, mirava o mar entre o som das gaivotas e das ondas, até que se começa a escutar um cântico de tons árabes, em crescendo. De repente, o céu do filme envermelhece, à semelhança da sala; a banda entra em palco; ouve-se uma explosão e uma cacofonia de sons diversos; e por fim é-nos permitido respirar. Com “Breathe”, claro está. Respiramos como tantos outros o fizeram ao escutar The Dark Side of the Moon pela primeira vez. Não é à toa que é um dos álbuns mais vendidos da história da música gravada.


Há, no entanto, uma particularidade: não é Waters quem começa por cantar, mas sim Jonathan Wilson, espécie de herói indie que encontrou um mentor no músico britânico (e que editou o belíssimo Rare Birds há coisa de meses). É ele quem tem feito de David Gilmour ao longo desta digressão e, mesmo que não os possamos nunca comparar, é certo que o norte-americano faz um trabalho notável como seu substituto. Os olhos do público virar-se-ão para ele imensas vezes, ao longo do concerto, mas é de Waters o holofote: gesticula, passeia-se pelo palco, pede ao público por alguma efusividade. Isto é um espetáculo rock, mas é também ativismo, é também comunhão, é também uma prova que somos mais parecidos com “os outros” do que aquilo que pensamos.






E é a partir dos “outros” que se constrói grande parte da ideologia inerente a esta digressão, que apesar de se intitular Us + Them poderia perfeitamente ser Us v. Them; nós, os de bem, os de amor, os de paz, contra a máquina que se alastra e devora tudo à sua passagem, transformando desertos em mares de sangue (como visto em “Welcome to the Machine”). Nós, de punho erguido, em protesto constante contra a corrupção generalizada, o avanço das armas sobre os povos, a fome e a miséria. Nós, estudados e empáticos, contra os líderes with no fucking brains que Waters descreve em “Picture That”, uma das poucas canções de Is This the Life We Really Want? que encontra espaço no alinhamento. E nós, os pais das gerações que hão-de vir, dos Émiles Zolas que nos apontarão o dedo pelo mundo que lhes deixámos.

A essas gerações pertencerão os jovens que Waters “contratou” ao Bairro da Flamenga, em Marvila, para dançarem em palco ao som de “Another Brick in the Wall, Part 2” que, a julgar pelo coro de vozes que se escutou e pelas reações nos rostos dos presentes, era o momento mais esperado de todo o concerto. Justifica-se; a canção que alguns ainda teimam em dizer intitular-se “We Don't Need No Education”, baseando-se esse erro comum num dos seus versos mais célebres, é o mais próximo que os Pink Floyd alguma vez tiveram de um êxito. Porque comparar uma escola a uma prisão ideológica não poderia senão ser um êxito. Tanto os ouvintes como os leitores deste texto já foram crianças, e sabem-no.

Não é habitual existir, em concertos rock, uma pausa tão prolongada como a que aqui se verificou – vinte minutos para desentorpecer as pernas, fumar um cigarro ou aproveitar para beber uma cerveja ao triplo do preço normal. Mas também não é habitual encontrarmos um som tão fabuloso e nítido na Altice Arena como aconteceu esta noite, pelo que rapidamente o público se esqueceu desse refrear nos ânimos e agradeceu a todos os santinhos, voluntária ou involuntariamente, ter havido Eurovisão em Lisboa. Durante essa pausa, uma série de mensagens políticas vão tomando conta do ecrã, com destinatários diversos: Mark Zuckerberg, criador do Facebook, Gina Haspel, nova diretora da CIA, todos aqueles que pedem intervenções no Irão ou na Coreia do Norte e até mesmo pobres cães e porcos – que «não são animais piores que os outros», parafraseando uma dessas mensagens.

São, isso sim, as figuras principais de “Dogs” e “Pigs (Three Different Ones)”, temas que levam ao erigir de uma enorme fábrica a meio da Altice Arena e que têm um alvo principal: Donald Trump. Se durante a sua interpretação em território norte-americano “Pigs”, e as montagens de Trump que a acompanham, levou a que apoiantes do atual presidente dos EUA abandonassem as salas onde Waters atuava, em Portugal o registo é bem diferente: aplausos, gritos de desprezo dirigidos a essa personagem, e sorrisos muitos estampados na cara dos presentes – particularmente quando, em bom português, uma mensagem surge no final da canção (já depois de um gigantesco porco insuflável ter passeado pela sala, e já depois de uma pobre ovelha ter servido champanhe a uma banda vestida de suíno – não será necessário ter de explicar a analogia): «Trump é um porco».

O solo de “Money” ainda é capaz, tantos anos depois, de nos paralisar – e não arrepiar – a espinha, e “Us and Them” explica a quem ainda não tinha percebido aquilo de que se falou esta noite. Mas é no final de “Eclipse”, e abençoado por uma pirâmide de luz, que se dá aquele momento que transforma todo um espetáculo: Waters de braços cruzados sobre o peito, visivelmente emocionado, largando um curto “obrigado” antes de apresentar a banda que o acompanha. A prova de que por mais fama que se tenha, ela não é nada comparada com o amor que se recebe.

Antes de um encore com “Wait For Her” / “Oceans Apart” / “Part of Me Died”, trilogia que encerra Is This the Life We Really Want?, Roger Waters ainda teve tempo para saudar quem, nas filas da frente, levou uma bandeira da Palestina para a Altice Arena – e deixar uma mensagem bem clara aos seus apoiantes e aos seus críticos: «não preciso de discursar sobre a BDS quando a IDF [Israeli Defense Forces, as forças armadas de Israel] está em todas as TVs, a matar protestantes pacíficos em Gaza». Uma Gaza para a qual será preciso acordar ou, pelo menos, perante a qual não ficar “Comfortably Numb”, o tema com que Waters encerra um espetáculo de três horas, entre confettis onde se lê “RESIST” e um novo agradecimento sentido ao público. Teimoso? Talvez. Mas perante o mundo em que vivemos – e o qual não queremos –, como permanecer imóvel em vez de marchar a seu lado?










24.sapo.pt

22
Mai18

Por que é que as pessoas insultam os seus governantes?

António Garrochinho



Por que é que as pessoas insultam os seus governantes?

"Se não há justiça para o povo,
que não haja paz para o governo"
Emiliano Zapata

Tão velhos como a luta de classes, os insultos proferidos pelos oprimidos costumam ter uma mesma base histórica e um mesmo propósito político. São formas da “expressão” popular que nem sempre são “fáceis” nem sempre proliferam massivamente, mas marcam (como poucas) os territórios da luta simbólica onde, com frequência, o sentido do humor mais corrosivo surte efeitos demolidores na moral dos “amos” e nos seus galões de prestígio. Claro que nunca falta o engenhoso genuflexo que se julga capaz de neutralizar os “dardos” do insulto popular com escudos de silogismos de sucata e sem riscos. Moral e cacete.

Há insultos de todo o tipo contra as classes dominantes. Produzem-se de todas as formas e em todos os géneros. Há canções, danças, poemas... dramaturgia, pintura, cinema e humor de tons variados. Ironias, sarcasmos, chungas... e até afrontas directas baseadas quase exclusivamente na procacidade fermentada de uma jantarada de ocasião ou na necessidade profunda de ferir o poderoso em alguma das suas fibras sensíveis: mães, filhos ou parentes próximos. Mesmo que não tenham culpa directa das humilhações e da exploração que se acumulam nas costas da classe trabalhadora.

Há um sentido subversivo no insulto popular, contra os governantes do dinheiro e os governantes da política, que desliza de formas diversas entre os territórios semânticos de cada época. A maior ou menor intensidade do insulto pode ser conjuntural e é sempre um eco de conformações culturais predominantes. Nada escapa aos eflúvios do insulto cuspido pelos povos na cara dos seus verdugos. 
Soube-o Cervantes como o soube Daumier... soube-o Chaplin  e soube-o Cantinflas. Abarca as pessoas e as instituições, cruza os mares da fúria social para levantar tormentas de adjetivos, substantivos e verbos... gestos, esgares e contorções. Tudo serve se o insulto é certeiro, se faz tremer as estruturas do ego nas suas mais caras fortalezas do poder e consegue ridicularizar todos quantos sustentam a autoridade de uns contra a imensa maioria. Há mesmo insultos finíssimos.

Tudo isto lança o pânico na classe dominante que precisa, como do ar que respira, de alguns redutos de “respeito” ou medo para se manter de pé. Um “subordinado” que teime em insultar a autoridade, produto do aumento da consciência ou da fadiga, começa a ser temido e reprimido. Nos casos mais conspícuos forja-se um círculo virtuoso que, mais cedo que tarde, precipitará a queda de algum verdugo e facilitará mais um passo, ainda que pequeno, no caminho da emancipação. Assim o testemunham as melhores tradições do grotesco e dos carnavais. Para só referir alguns casos.

Mas no insulto também se reproduz a ideologia da classe dominante infiltrada nas cabeças dos dominados. Por exemplo, o sexismo que reina livremente no imaginário hegemónico burguês escorre sem controlo nem filtro sobre o arsenal dos que se treinam para insultar ou ofender os “patrões”. Por exemplo, todo o género de fetichismo dos genitais e toda a espécie de subordinação coital machista costuma florescer na metralha ofensiva popular carregada com a sua marca de classe e com força irreverente. Tudo isto estabelece uma diferença clara, mas lança um desafio semântico nodal. Não mediremos aqui com a mesma vara a intensidade humilhante dos insultos da classe dominante face aos arsenais da classe subordinada. Não cairemos nessa armadilha.

O “modo” no insulto popular é determinante. Implica os matizes e as intenções. Há insultos que vêm do picaresco e do humor sexualizado e há insultos que emergem do medo e da raiva. Não poucas vezes são combinações barrocas com resoluções explosivas. Mas na sua textura áspera, o insulto ao poderoso implica um rompimento. Não há insulto popular contra os oligarcas que não pondere o enérgico tesouro da rebeldia. Contundentes e expressivos, os insultos enriquecem na sua intensidade, e na sua qualidade, muitas das fórmulas linguísticas, mas com a jactância de quem descobre uma força ofensiva cheia de analogias que vêem o léxico como uma arma que tem, indubitavelmente, arestas destruidoras. A defensiva que passa à ofensiva. Tal como os tesouros, os insultos costumam estar à flor da terra e assim, pesadas de muitos séculos, as linguagens pejorativas de classe fortaleceram-se, pacientemente. É um arsenal popular de palavras que ao fazerem tremer a vaidade do poder e o poder da exploração, estendem o seu exemplo e contagiam-se para lá da perspectiva comum e da comarca da submissão (não há limites idiomáticos nem gestuais). É um jardim fértil onde se refazem os armamentos das batalhas diárias e o seu poderio se torna potencialmente infinito. Custe o que custar.

Também é possível criar novos insultos mediante a formação de conceitos e de vocábulos contra os estereótipos impostos que caracterizam uma conduta determinada ou o nome de uma classe de indivíduos (mas isto não é uma cátedra de gramática) porquanto o insulto reflecte o modo de produção e as relações de produção degeneradas em rebeldia provocadora do povo contra os seus “amos”.

Ficam fora desta reflexão aquelas manias burlonas que mais não são do que desplantes do individualismo burguês infiltradas nos povos como formas de catarse reduzidas a banalidades. Dessas, não obstante, convém resgatar o que de engenhoso possam desenvolver graças à criatividade pessoal e que bem podem dar um salto de qualidade mobilizadas ao abrigo de consensos que recolham o que de força rebelde ofereçam. Alguns exemplos muito valiosos estão a fermentar nos EUA, por exemplo, contra Donald Trump e as esquizofrenias mafiosas nos seus empresários da guerra.

Ora todos sabemos muito bem que a realidade não se transforma só com insultos aos “poderosos”. E que mesmo uma época fértil em injúrias graves não implica, “per se”, saldos positivos em matéria de organização nem de elaboração de programas revolucionários com vocação de praxis sistematizada. A proliferação dos insultos contra a classe dominante, por si mesma, não é mais do que um sintoma que, para crescer nos seus valores rebeldes, deve construir consciência e acção. De nada serve ficar satisfeito com uma concatenação de vociferações pejorativas se isso não passar de um mero reduto que tranquiliza. Logo que estejamos seguros da genuína origem popular dos insultos aos vitimários do povo trabalhador, é necessário acertar os passos que conduzem a uma saída emancipadora, de contrário ficaremos muito contentes insultando tudo para que nada mude. Como reformistas vulgares.


aspalavrassaoarmas.blogspot.pt

22
Mai18

22 de Maio de 1871: Abrem as Conferências Democráticas, no Casino Lisbonense, com a discussão de "O Espírito das Conferências", de Antero de Quental.

António Garrochinho


Série de conferências - também conhecidas simplesmente por Conferências do Casino - levadas a público em 1871, em Lisboa, por iniciativa do chamado grupo do Cenáculo, de que faziam parte Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Salomão Sáragga, Manuel Arriaga e Guerra Junqueiro. Este é o ponto mais alto da Geração de 70. Visavam abrir um debate sobre o que de mais moderno, a nível de pensamento, se vinha fazendo lá fora. Aproximar Portugal da Europa era o objetivo máximo, anunciado, aliás, no respetivo programa.


O programa das Conferências, que surgiam como uma espécie de consequência natural das discussões ideológicas travadas no Cenáculo, anunciava "ligar Portugal com o movimento moderno", "agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna" e "estudar as condições da transformação política,económica e religiosa da sociedade portuguesa".


A conferência inaugural, intitulada "O espírito das conferências", foi proferida por Antero de Quental, que afirmou a necessidade de regenerar Portugal "pela educação da inteligência e pelo fortalecimento da consciência dos indivíduos". Na segunda conferência, o mesmo Antero analisou as "Causas da decadência dos povos peninsulares", que, na sua opinião, correspondiam ao catolicismo pós-tridentino, que impôs o obscurantismo à centralização política das monarquias absolutas, que determinou o aniquilamento das liberdades locais e individuais, e à política expansionista ultramarina, que impediu o desenvolvimento da pequena burguesia. A terceira conferência, intitulada "A literatura portuguesa", foi pronunciada por Augusto Soromenho, que denunciou a decadência da literatura portuguesa e defendeu a necessidade de "dar por base à educação a moral, o dever, do que aproveitará a literatura". A quarta conferência, "A Nova Literatura (O Realismo como nova expressão da Arte)",foi proferida por Eça de Queirós, que aí lançou os fundamentos da sua conceção de Realismo, influenciada por Flaubert, Proudhon e Taine. A quinta conferência coube a Adolfo Coelho, que avançou algumas propostas revolucionárias para a reorganização do ensino em Portugal, a mais importante das quais consistia na "separação completa do estado e da igreja".


As conferências foram interrompidas antes da sexta, que seria dita por Salomão Sáragga e que versaria sobre os críticos históricos de Jesus, por portaria ministerial do Marquês de Ávila e Bolama, onde se alegava que nas conferências se tinham sustentado "doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas doestado". Os conferencistas reagiram contra a proibição com um protesto público, com o qual se solidarizaram vários intelectuais, como Alexandre Herculano, que acudiram em defesa da liberdade de expressão.

De qualquer modo, entre os intelectuais portugueses, ficou o gérmen da modernidade do pensamento político,social, pedagógico e científico que na França, na Alemanha e na Inglaterra se fazia sentir. Este espírito revolucionário e positivista dominava a maioria da jovem classe pensante.

Fontes: Conferências Democráticas do Casino Lisbonense. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. 




22
Mai18

22 de Maio de 1885: Morre o escritor francês Victor Hugo, autor de "Os Miseráveis"

António Garrochinho


O maior escritor do século XIX, Victor Hugo, morre em 22 de Maio de 1885 de congestão pulmonar, aos 83 anos. O carro fúnebre “dos pobres”, como desejara, carregaria o ataúde ao local das cerimónias oficiais. Os seus restos mortais seriam expostos sob o Arco do Triunfo e depois levados para o “Panthéon”. Uma multidão de 2 milhões de pessoas seguiu o cortejo. 


O autor de Os Miseráveis, O Corcunda de Notre-Dame, Hernâni,  Contemplações e tantas outras obras-primas brilhou em vários géneros, passando da poesia ao romance histórico e às peças de teatro. 


Victor Hugo nasceu em 26 de Fevereiro de 1802 em Besançon, sendo o mais novo de três irmãos. O seu pai era general do Império Napoleónico. Mas foi a sua mãe, em particular, que o educou. 


Ainda no liceu, Hugo parecia já ter uma ideia bem precisa do seu futuro. Aos 14 anos escreveu: “Quero ser como Chateaubriand ou nada.” A sua inspiração, François-René de Chateaubriand foi um escritor que se imortalizou pela magnífica obra literária pré-romântica. É notado pelo rei Luis XVIII que lhe manda pagar uma pensão. Em 12 de Outubro de 1822 casa-se com Adele Foucher, uma amiga de infância, com quem teve cinco filhos. 


Hugo junta-se a alguns escritores e formam o grupo Cenáculo. Este círculo de jovens autores seria o foco do romantismo. Em 1827, publica a peça Cromwell. O prefácio anuncia claramente a sua vontade de romper com as regras clássicas – unidade de tempo, de lugar e de acção. Aos 27 anos, Hugo apresenta uma nova peça, Hernâni, na Comédie-Française. 


Os partidários do classicismo mostram-se ofendidos uma vez que a regra das três unidades não fora respeitada. O confronto entre os românticos e os clássicos é violento. Travariam a mesma batalha a cada representação de Hernâni. Hugo torna-se o cão de fila da escola romântica, em companhia de Gérard de Nerval e Théophile Gautier. 


Em 1828, surgem os Orientais e o Último Dia de um Condenado. Em 1831, publica o seu primeiro romance histórico, O Corcunda de Notre Dame, que celebrizou as personagens Quasimodo e a cigana Esmeralda. Desde o lançamento, a obra conheceu um extraordinário sucesso. O público romântico apreciou sobremaneira o universo da Idade Média recriado magistralmente por Hugo. 


Em Fevereiro de 1833, é levada ao palco a primeira representação da sua Lucrécia Bórgia. Entre os actores  encontrava-se Julie Drouet, por quem Hugo se apaixona. Essa história de amor duraria cinquenta anos. 


Em 1841, é eleito para a Academia Francesa de Letras. A sua filha primogénita, Léopoldine, morre jovem em 1843. Esta tragédia afecta-o profundamente e muitos creem que foi o acontecimento que o levou para a política. 


É eleito pelo Partido Republicano, deputado à Assembleia Constituinte de 1848. Condena asperamente o Golpe de Estado de 2 de Dezembro de 1851 do príncipe Luís Napoleão, sobrinho de Napoleão Bonaparte, a quem cognominava  ‘Napoleão, o Pequeno’ em contraposição a Bonaparte que chamava  ‘Napoleão, o Grande’. 


Forçado ao exílio na Bélgica, Hugo aproveita para compor poemas que reúne em Les Châtiments (1853) e Contemplações (1856). Em 1862, conclui Os Miseráveis, que obtém estrondoso sucesso de público e crítica e que torna imortais personagens como o trabalhador Jean Valjean e o chefe de polícia Javert. 

Com a proclamação da República em 1870, Hugo regressa a Paris. Encarna aos olhos do povo a resistência republicana ao Segundo Império. Em 8 de Fevereiro de 1871, é eleito para deputado e, em 1876, senador. Uma de suas primeiras intervenções é a defesa em favor da amnistia aos ‘communards’ da Comuna de Paris. Quando completou 80 anos, uma multidão estimada em 600 mil pessoas desfilou diante das suas janelas na Place Vendome. 


Victor Hugo sobressaiu-se também no campo político e social. Lutou contra a pena de morte, pela paz, pela condição feminina, denunciou o clero. Reconhecido em vida pelos seus pares e pelo povo como o grande escritor de seu tempo, a obra imortal de Victor Hugo é um património da cultura universal. 


Fontes: Opera Mundi
wikipedia (imagens)
Victor Hugo em 1875, por Comte Stanisław

Cricatura de Victor Hugo no ponto máximo da sua carreira política, por Honoré Daumier, (1849)
O funeral de Victor Hugo
22
Mai18

22 de Maio de 1911: Criação do Escudo, unidade monetária da República Portuguesa

António Garrochinho


O escudo foi criado em 22 de maio de 1911, cinco meses após a Proclamação da República, por decreto do Governo Provisório. O ministro das Finanças era, então, José Relvas. A nova moeda renovou o sistema monetário português, colocou a unidade monetária portuguesa ao nível das dos outros países e evitou as desvantagens práticas do real (moeda da monarquia), cujo valor era muito pequeno, o que obrigava ao emprego de grande número de algarismos para representar na escrita uma quantia. Assim, a taxa de conversão foi fixada em mil réis(reais). 

A nova moeda foi buscar o nome ao início da II Dinastia. O Rei D. Duarte, quando decidiu retomar a cunhagem e mouro, mandou bater os primeiros escudos, dado que era esta a figura que aparecia representada na moeda. Ao longo da história da monarquia, outros reis mandaram cunhar moedas de ouro com esta denominação. O escudo era, assim, uma moeda nobre por ser fabricada naquele metal precioso. Deverá ter sido esta uma das razões que levou os responsáveis do regime republicano a designarem a nova unidade monetária desta forma.


Segundo o preâmbulo do decreto de 22/05/1911, encontravam-se, na altura, em circulação cerca de 34 400 contos de moedas de prata e 3 900 contos de moedas de cupro-níquel e de bronze. O mesmo diploma mandou substituir estes valores por 35 500 contos de moedas de prata de 1$00, $50, $20 e $10 e por 3 750 contos de bronze-níquel de $04, $02, $01 e $005, mas este plano nunca foi integralmente cumprido. As primeiras moedas só foram cunhadas em 1912 e até 1917 apenas foram emitidos cerca de 13 000 contos de novas moedas em prata.

Quanto ao papel-moeda, encontravam-se em circulação, no momento da Proclamação da República, notas de 500, 1 000, 2 500, 5 000, 10 000, 20 000, 50 000 e 100 000 réis que o Banco de Portugal alterou, apondo-lhes sobre a coroa a sobrecarga República, tendo desta forma continuado em circulação até 1929. Contudo, a primeira nota emitida em escudos data de 1913 e resultou da alteração da chapa já gravada destinada à nota de 5 000 réis,que passou assim a apresentar o valor facial de 5 escudos/ouro chapa I. Nela figurava Alexandre Herculano. A primeira nota efetivamente concebida para escudos foi a de 20 escudos/ouro chapa I, com uma primeira emissão datada de 14 de outubro de 1916. No centro desta nota aparecia Almeida Garrett e dos lados as figuras alegóricas da Justiça e da Glória. 

A mudança do sistema monetário estendeu-se às colónias portuguesas de África, por decreto do Governo Provisório de 22 de maio de 1911, complementado pelo decreto nº 141, de 18 de setembro de 1913 que determinou ainda que a contabilidade pública das colónias portuguesas de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique deveria ser feita de acordo com o novo sistema monetário a partir de 1 de janeiro do ano seguinte. Foi também em 1913 que a contabilidade do Estado português passou a ser feita em escudos.


Desde 1911, data do I Governo Constitucional, vivia-se em Portugal um forte clima de instabilidade política,agravado, em 1914, pela Primeira Guerra Mundial e pela participação de Portugal neste conflito a partir de 1916.As consequências internas foram gravosas. O período de 1917 a 1924 caracterizou-se pela escassez de moeda,coexistindo as de bronze, com as de ferro e cupro-níquel. Para as substituir, registou-se uma avalanche de cédulas e outro numerário de papel. A subida dos preços que acompanhou a Primeira Guerra Mundial e se prolongou até 1924 fez com que o escudo neste ano passasse a valer menos 25 vezes do que aquando da sua criação e o valor intrínseco da moeda metálica ultrapassou o respetivo valor nominal, provocando o seu entesouramento,nomeadamente através de depósitos no estrangeiro. Ao mesmo tempo, surgiram cédulas emitidas à margem da lei para as substituir. Como medida para ultrapassar esta situação, o Banco de Portugal e a Casa da Moeda emitiram cédulas, tendo aquele procedido ainda à impressão de notas de valores muito baixos - 50 centavos e 1 escudo. Na mesma época, circularam igualmente notas de 2, 5, 10, 20, 50, 100, 500 e 1 000 escudos, em mais de uma chapa,nelas figurando personalidades de relevo da História portuguesa.

Em 1924, o ministério de Álvaro de Castro tomou uma série de medidas para travar a queda do escudo,nomeadamente a venda de reservas de prata do Banco de Portugal. Neste ano, o executivo reformou também amoeda metálica, aumentando o teor da liga e reduzindo o seu valor real. As cédulas foram sendo recolhidas e retiradas de circulação, sendo substituídas por moedas de 1 escudo e de 50 centavos em bronze e alumínio, de 20, 10 e 0,5 centavos em cobre. Em 1927, foi decretada a substituição das moedas de bronze e alumínio por moeda de igual valor em alpaca. Quanto às notas, o Banco de Portugal lançou novas notas e reforçou as anteriores. De recordar que o escudo em 1924 valia 25 vezes menos do que em 1911, em grande parte devido ao esforço financeiro português na Primeira Guerra Mundial. Em 1925 deu-se o maior escândalo financeiro da história do escudo: a grande burla-falsificação de Alves dos Reis, ou caso Angola e Metrópole, com mais reflexos negativos em termos políticos do que financeiros ou económicos. Alves dos Reis inundou o País com 200 000 notas de 500 escudos duplicadas, com a efígie de Vasco da Gama.


Em 1930, o ministro das Finanças António de Oliveira Salazar, acabou com a dupla circulação monetária em Portugal, retirando a divisa monárquica. A partir de 1931, assistiu-se a um novo período na história da moeda portuguesa, marcado pela transformação oficial do escudo de ouro em simples padrão teórico. O escudo conheceu entre 1920 e 1940, apesar dos percalços da economia portuguesa, um período de "relativa estabilidade", com"apenas" 20 desvalorizações. Até ao fim da Segunda Guerra Mundial, 1945, o escudo não evitou algumas derrapagens e oscilações, devido ao conflito, mas depois recuperou a estabilidade, que se manteve até à década de 60. Outra faceta curiosa marcou a evolução do escudo no Estado Novo: o uso de notas e moedas como complemento popularizante dos manuais de história e da propaganda oficial do regime. Registou-se na Ditadura também uma normalização de emissões de notas e moedas, "patrióticas" e de glorificação dos heróis nacionais e dos Descobrimentos. 

Na década de 60 o império começou a ruir. O escudo coabitava nas colónias com moedas locais; aí a guerra estalava e ameaçava perdurar, como veio a suceder. Na economia portuguesa, a inflação, pela primeira vez na história da Ditadura, conheceu um crescimento desmesurado, com o poder de compra em queda e as convulsões sociais a ameaçarem crises políticas. Em 1971, na Europa comunitária, entretanto, começava a construir-se amoeda única europeia. Em Portugal, depois do 25 de abril de 1974, acabou a chamada "zona do escudo",processo que se concluiria nas ex-colónias em 1977, com a implementação das novas moedas nacionais. Crises económicas e inflação permanente em níveis elevados assolaram o País desde a Revolução, principalmente entre 1977 e 1986, conhecendo-se depois, graças à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia um período de crescimento económico. Novas moedas de 1, 5 e 10 escudos de latão-níquel e de 20, 25, 50, 100 e 200 em cupro-níquel, para além de edições especiais. Alguns destes valores em moeda seriam extintos na década de 90.Em relação ao papel-moeda, mantiveram-se em circulação notas nos valores anteriores e iniciou-se a emissão de valores novos: 2 000 escudos (1991), 5 000 (1980) e 10 000 (1996). As últimas notas em escudos fabricadas pelo Banco de Portugal (1 000, 2 000, 5 000 e 10 000) entraram em circulação em fevereiro e outubro de 1996.


Entretanto, desde julho de 1990 que existia a União Económica e Monetária, que visava a coordenação das políticas monetárias europeias e a criação a médio prazo de uma moeda única na União Europeia (UE, nova designação da CEE desde 1992). Desde 1994 os estados-membros da UE adotaram políticas de combate ao défice e de convergência económica. Em 1995, cria-se a designação de "euro" para a nova moeda única, em substituição do ECU. Entretanto, o escudo preparava-se para desaparecer: em 1999, valia menos 2 500 vezes do que quando foi criado. Portugal foi um dos países que conseguiu entrar no clube Euro dos países que adotariam a nova moeda única, graças ao facto de ter conseguido cumprir os critérios de convergência para a nova divisa. O euro começou a fazer parte em 1 de janeiro de 2002 nas carteiras dos portugueses, coabitando com o escudo até 28 de fevereiro desse ano, quando a velha moeda republicana portuguesa, com 91 anos, desapareceu para sempre.

História do escudo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. 
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50 centavos 1926
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