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Em 2005, a Revista Seara Nova, então dirigida por Ulpiano Nascimento, publicou uma conversa com José Manuel Tengarrinha, um dos dirigentes que mais se destacaram na liderança da oposição democrática, em 1969 e 1973. Dessa longa conversa, em que o político e historiador reflecte e relata na primeira pessoa factos da resistência anti-fascista ao longo dos 48 anos da ditadura, transcrevemos a parte relativa ao movimento CDE.
Seara Nova – Em 1969, surge a Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Todos estes aspectos que já abordámos influenciaram a CDE?
José Manuel Tengarrinha – Daí a necessidade de compreender as características que a CDE tem em 1969. É evidente que é fortemente marcada pela queda política de Salazar e pela pretensa esperança na abertura do regime. Todos nós fomos embalados nessa esperança, embora uns mais que outros. Na nossa área, a esperança era limitada, mas a área socialista estava eufórica. Mário Soares, que tinha estado no exílio em São Tomé, foi amnistiado por Marcelo Caetano e regressou. Este facto é importante para se perceber o contexto em que nasce a CDE. Mário Soares pretende apresentar-se como o dirigente máximo da oposição e como o interlocutor legítimo para Marcelo Caetano dialogar com a oposição. Nesse sentido, elabora um documento que é tornado público e enviado para Marcelo Caetano, em que diz que é preciso encontrar forças políticas capazes de ter visibilidade, e dando como completamente excluída a hipótese de o PCP desempenhar qualquer acção relevante no panorama da oposição portuguesa por se encontrar praticamente extinto. Ou seja, apresenta-se como o único capaz de ser a face da oposição democrática. Esse documento reúne cento e vinte assinaturas, entre as quais as de Urbano Tavares Rodrigues, Rogério Fernandes e outros.
SN – Que importância tem nessa altura e nesse contexto o II Congresso de Aveiro?
JMT – Era aí que queria chegar. Nota desta evolução que tenho estado a assinalar são as características dos três congressos de Aveiro. Os dois primeiros são congressos republicanos, só o último se designa Congresso da Oposição Democrática.
SN – O que denota o peso do republicanismo histórico.
JMT – Exactamente. O primeiro é inclusive presidido por um antigo ministro da Primeira República.
SN – Mas Mário Sacramento já participa.
JMT – É a condescendência porque não tinham ninguém que o conseguisse organizar. Reconheciam o Mário Sacramento e respeitavam-no, embora soubessem que era militante do Partido Comunista. Havia uma enorme admiração intelectual por Mário Sacramento, que foi o secretário do Congresso e teve grande influência em toda a sua organização, ainda que este primeiro congresso se tivesse limitado a fazer a denúncia política, com intervenções dispersas e com um acento mais «comicieiro» do que propriamente de reflexão sobre os problemas. O segundo congresso, em 1969, realiza-se já com o Marcelo Caetano como presidente do Conselho de Ministros e, nessa altura, a intervenção dos elementos da área comunista, digamos assim, tanto os intervenientes como os que estão na organização, já é mais forte. E tem esta característica que é interessante: está dividido em secções e com a preocupação de análise das situações concretas do País. Não é já apenas a proclamação política, como no primeiro, e no velho estilo da retórica republicana, mas um congresso em que se pretendeu estudar problemas e encontrar soluções. Dado que a participação foi muito mais diversificada que no primeiro congresso e dado que a nova situação política, com o Marcelo Caetano, trazia algumas perspectivas de que a oposição se apresentasse como uma força que exercesse influência na condução política, elabora-se a Plataforma de São Pedro de Moel.
SN – A Plataforma de São Pedro de Moel assenta num acordo, mas nas legislativas de 1969 a oposição concorre em duas listas distintas.
JMT – Chegou-se a acordo, mas havia questões em que as divergências eram grandes e são estas que acabam por vir a determinar a existência da CDE e da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Primeiro, a questão da guerra colonial com o reconhecimento do direito das colónias à independência que era visto pela corrente socialista de uma forma mais recuada, assente num estatuto de certa autonomia, diria que um neocolonialismo encapotado. Para isto, havia duas razões, uma delas por quererem captar sectores moderados da oposição, ainda na área próxima do republicanismo histórico que era colonialista; outra prendia-se com a pretensão de serem elementos válidos para o diálogo com Marcelo Caetano e, obviamente, se defendessem a independência das colónias não o conseguiriam, uma vez que para aquele a defesa das colónias era ponto de honra e quem defendesse a independência e o diálogo com os movimentos de libertação era, pura e simplesmente, considerado traidor. Recordo-me que nessa altura Mário Soares chegou a ter reuniões com o presidente da Acção Nacional Popular (ex – União Nacional) para tentar acertar posições.
SN – A transição do regime pela via democrática também era motivo de divergência. Porque é que a área da CDE considerava que tal não seria possível?
JMT – O nosso corte com o regime marcelista eliminava liminarmente essa possibilidade. O nosso programa – aliás, essa parte foi escrita pelo Jorge Sampaio, naturalmente com a contribuição de todos – logo no início dizia que não era credível que o regime marcelista pudesse conduzir a uma democracia. (O que veio a verificar-se logo no final de 1971, com o recrudescimento da repressão).
Havia uma outra divergência. Nós defendíamos que o regime fascista estava alicerçado num poder económico que era preciso destruir, e que a ligação/relação entre poder económico e poder político estava de tal maneira entrelaçada que considerávamos ser impossível “deitar abaixo” apenas o poder político, conservando as estruturas do poder económico em que o regime fascista se apoiava: os monopólios, os latifundiários, o capital financeiro. Na Plataforma de São Pedro de Moel, após uma violenta discussão, ainda conseguimos incluir uma referência à necessidade fundamental de limitar os monopólios.
SN – Como é que o problema da guerra colonial foi resolvido no documento da Plataforma de São Pedro de Moel?
JMT – Negociações com os movimentos de libertação, não mais do que isso, e via política para a solução do conflito. Pela primeira vez – e o documento produzido prova-o – a oposição, numa perspectiva programática, apresenta-se com uma certa visão conjunta sobre os problemas, mas era evidentemente frágil.
SN – Essa fragilidade, por assim dizer, impede a unidade nas eleições legislativas de 1969?
JMT – Quando se começam a preparar as eleições havia todo este lastro positivo e negativo. Além disso, havia um programa de estratégia de organização e de movimentação política que esteve muito na origem distintiva da CDE e da CEUD. Em Julho de 1969, decorrente de algumas reflexões que tínhamos feito no ano anterior, discutimos na organização do PCP – e tínhamos a sorte de o dirigente do partido responsável pela região de Lisboa ser um homem extraordinariamente inteligente e aberto, o Pedro Ramos de Almeida – a ideia de que deixar que a direcção de todo o movimento político se cristalizasse nas figuras políticas habituais, tanto dos ainda recuperados do republicanismo histórico, como do Mário Soares e outros, seria reduzir a capacidade de mobilização do próprio movimento. Daí o símbolo da CDE, o conhecido «pé de galo» que simboliza as bases a crescer para o topo, concebido pelo José Carlos Ary dos Santos.
SN – Ao longo da luta anti-fascista nunca houve nada parecido com o movimento CDE?
JMT – Nunca. A grande originalidade da CDE é a inversão completa de todos os critérios até então utilizados para a organização dos movimentos de oposição.
SN – Para esta inversão não teve igualmente importância o papel dos católicos?
JMT – Ainda não. Eles aparecem inicialmente mais ligados à CEUD. Na CDE tem importância um outro factor, o Maio de 68. É que aqueles jovens, e muita daquela gente que entra na CDE por via dos movimentos estudantis e dos católicos progressistas são fortemente influenciados pelo Maio de 68 e pelo seu carácter «basista». Por isso é que a nossa proposta de formar um movimento que partisse das bases vai encontrar receptividade em todos esses movimentos que nada tinham a ver com o Partido Comunista.
SN – Não deixa de ser curioso o facto de essa não ser a forma de organização de um partido comunista.
JMT – Tratava-se de duas realidades diferentes. Uma é a realidade do PCP como organização e como partido; outra é a promoção de movimentos políticos e sociais contra o regime. E, de facto, o carácter basista da CDE é impulsionado pelo PCP, nasce das reuniões que mantivemos com inúmeras pessoas de diferentes ideologias. Claro que o PCP tinha um objectivo que não podia ser confessado: desta maneira, reduziam-se as personalidades a um papel menor e o movimento oposicionista não ficava preso às orientações reformistas e oportunistas dessas personalidades.
SN – Esta forma de organização revelou-se importante para conseguir uma participação tão ampla quanto possível?
JMT – Sem dúvida. Lembro-me da primeira Assembleia realizada em Lisboa, no Palácio do Marquês da Fronteira, onde estavam mais de 400 pessoas. É a partir do movimento CDE que vamos ter um conjunto de pessoas a participar activamente e influentemente no movimento político, como nunca tinha acontecido. Eram pequenos comerciantes, operários e gente de camadas sociais que normalmente obedeciam às ordens dos senhores republicanos. Formaram-se comissões de freguesia, comissões concelhias, distritais e todas elas com uma influência fundamental na grande dinâmica que foi a CDE.
SN – Por que sucede a divergência e, em alguns distritos, se apresentam ao acto eleitoral a CEUD e a CDE?
JMT – Na referida reunião realizada no Palácio Fronteira ainda participam elementos da Acção Socialista, mas depois faz-se a «separação das águas» tendo em conta o carácter reformista e oportunista daquela linha que não se conciliava com a nossa. A deles continuava a ser a de uma organização de cúpulas, a nossa era basista. A CEUD concorreu apenas em Lisboa, Porto e Braga. Em todos os outros círculos eleitorais era a CDE. A movimentação que se conseguiu foi de uma amplitude que, a nós próprios, surpreendeu. Era gente tão diversa…Lembro-me do Nicolau Breyner vir com os seus cães fazer segurança à sede de Campo Pequeno. Era realmente impressionante. É deste movimento que nasce o MDM (Movimento Democrático de Mulheres), a Intersindical Nacional (uma das organizações da CDE eram as bases sócio-profissionais). Nessas reuniões de mulheres, havia pessoas de muito diferente nível social e cultural: ao lado de senhoras de casacos de peles estavam operárias fabris, discutindo em pé de igualdade. Um nível de democracia nunca visto. Aliás, a participação de mulheres foi espantosa. Os movimentos oposicionistas eram machistas, raramente havia mulheres. Havia a Isabel Aboim Inglês, a Maria Lamas, a Virgínia Moura, mas, em quantidade, as mulheres eram raríssimas. Na CDE não, e isso mesmo acabou por traduzir-se no número de mulheres que integraram as nossas listas.
SN – Em 1969, a CDE vai às urnas e mesmo estando impedida de falar da guerra colonial nos seus comícios e sessões…
JMT – …Era eu que abordava sempre o tema, pelo que era sempre o último orador. Na maioria das vezes, assim que começava a falar sobre a guerra colonial a PIDE e a polícia interrompiam a sessão. Na sessão inaugural da campanha eleitoral, na Sociedade de Belas Artes, falei agachado no meio de um fortíssimo cordão de segurança formado por companheiros. No final, houve pancadaria que foi uma coisa louca.
Uma última nota sobre 1969. Alguns sectores católicos e o próprio Mário Soares consideravam-nos uns tontos ou uns ingénuos manobrados pelo PCP. A verdade é que para a estratégia de Soares e Zenha não dava jeito nenhum ter qualquer aliança com a CDE. Pretendiam que a CEUD, a partir da grande projecção das personalidades individuais, pudesse ter uma maioria esmagadora no campo da oposição. Eu não era conhecido, o Pereira de Moura não era conhecido, o Jorge Sampaio era conhecido como dirigente académico mas, no país, muito pouco. Portanto, confiavam que a força atractiva das suas personalidades seria suficiente para alcançarem um bom resultado, com o qual se apresentariam ao Marcelo Caetano como representantes da oposição. Só que as contas saíram-lhes furadas. Em Lisboa, a CEUD teve cerca de 4 por cento e a CDE teve 19 por cento.
SN – Depois da derrota, Mário Soares vai para o estrangeiro e, no exterior, cria o Partido Socialista. Como se conciliam as posições nas eleições legislativas de 1973?
JMT – No final de 1971, há a grande repressão do regime de Marcelo Caetano provocada pela influência que os «ultras» tinham sobre ele. A ideia que alguns tinham de que o regime seria liberalizado e de que teria havido um encontro em Londres entre mandatados de Marcelo Caetano e representantes dos movimentos de libertação foram factos que agitaram muito os «ultras». Através do presidente, Américo Tomás, exerceram uma forte pressão sobre Marcelo que faz uma viragem na condução do regime. As cooperativas são fechadas de forma brutal. Até a Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, que tinha sido sempre consentida mesmo durante o salazarismo, foi encerrada. As perseguições aos sindicalistas, como Daniel Cabrita e outros, traduzem-se no encerramento de vários sindicatos. Nessa altura, as movimentações que se fazem são essencialmente ao nível das reivindicações dos trabalhadores porque a oposição ficou politicamente muito limitada na sua capacidade de intervenção.
SN – Mas em alguns distritos a CDE mantinha uma organização activa.
JMT – Sim. Nunca morreu e até assumiu formas de luta muito concretas, como a da luta contra a censura. O Fernando Namora, por exemplo, fazia parte do secretariado da luta contra a censura. A luta pela libertação dos presos políticos, com a constituição da Comissão de Socorro aos Presos Políticos, e diversas lutas contra o aumento do custo de vida são outros exemplos.
SN – A percepção de que Marcelo Caetano não estava disposto a qualquer abertura democrática foi um factor importante para a unidade da oposição?
JMT – Em 1973, as condições alteraram-se. Os dirigentes socialistas que estavam em Portugal viviam muito intensamente a situação do País. Para estes era claro que as propostas que a CDE tinha feito em 1969 se mantinham perfeitamente válidas. Todos reconheciam – aliás, isto está documentado nas teses do Congresso da Oposição Democrática de 1973 – que, ao contrário do que a CEUD dizia em 1969, e de acordo com o que dizia a CDE, Marcelo Caetano não significava uma alternativa democrática para o País. Não havia qualquer esperança de que, através do regime marcelista, Portugal pudesse atingir a democracia. Segundo aspecto em que agora todos estavam de acordo era o de que a guerra colonial já tinha atingido tais proporções que era impossível, por via militar, resolver o problema. Por outro lado, homens como Salgado Zenha já tinham percebido que nunca Marcelo Caetano permitiria que fossem alternativa dentro do regime. Portanto o entendimento estava facilitado.
SN – Esse entendimento foi conseguido no Congresso de Aveiro de 1973?
JMT – O Congresso de 1973, o primeiro designado por Congresso de Oposição Democrática e diferentemente do que tinha acontecido antes da constituição da CDE, foi um congresso amplíssimo, com uma muito vasta organização. Desde as freguesias, às concelhias e distritais, realizaram-se reuniões muito participadas de preparação que levaram a que o Congresso fosse organizado com a mesma filosofia da CDE: das bases ao topo. A própria composição social dos delegados dos distritos à Comissão Nacional Preparatória do Congresso se alterou profundamente: agora, eram agricultores, operários, pequenos comerciantes, intelectuais, profissionais liberais. Foi uma coisa única, que contrastou grandemente com os congressos republicanos, até ao nível das decisões, da estratégia. Tudo foi discutido pelo representante de cada distrito, eleito pelas concelhias, e com uma irrepreensível característica democrática: nunca houve a imposição de qualquer centralismo, de qualquer grupo de dirigentes que assumisse ou quisesse assumir a direcção do que quer que fosse. Mas é importante que se diga que este grandioso congresso só foi possível porque os socialistas que viviam em Portugal tinham então uma visão da realidade diferente dos que estavam no estrangeiro.
SN – Do Congresso de 1973 sai uma plataforma política, diferente da plataforma de São Pedro de Moel. É mais importante?
JMT – Muito mais importante e por várias razões. Por um lado, dava a imagem de uma oposição unida, não através de figuras, mas de um programa e das movimentações populares e de base que se geraram em todo o País. E isto porque as «comissões» da CDE não tinham morrido, estavam, quando muito, adormecidas. Por outro lado, havendo esta base política de apoio, estavam criadas as condições favoráveis para que a oposição se apresentasse em bloco nas eleições de 1973. Tínhamos também a noção – nas reuniões que já havia com militares – de que o facto de a oposição se apresentar com uma plataforma conjunta era um factor importante para que os próprios militares, nas suas diferentes sensibilidades e correntes políticas e ideológicas encontrassem pontos comuns de acordo. Aliás, fazendo a comparação entre o programa do MFA e a plataforma política resultante do Congresso de 1973, encontram-se evidentes semelhanças.
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