No recato do quotidiano parlamentar, o CDS apresentou uma proposta para ressuscitar um “grupo de trabalho”, criado em 2005, que tinha por missão “ressarcir” os ex-colonos portugueses que acorreram a Portugal na sequência da descolonização. A iniciativa, que toca a mais de 60 mil pessoas, tem óbvios propósitos eleitorais. Mas não só: é a própria descolonização que é atingida de forma sibilina quando se fala de “espoliados” e da perda de “bens e direitos”.
A questão tem sido um cavalo de batalha da direita. Em 1992, uma resolução do conselho de ministros, governava Cavaco Silva, deu origem a um Gabinete de Apoio aos Espoliados — que, no entanto, não produziu efeitos. Em 2005, já nas últimas semanas do governo de Santana Lopes, quando o executivo estava demitido e em funções de gestão, foi criado um “grupo de trabalho” que também deu em nada. O tal que o CDS agora quer recuperar.
Percebe-se que as tentativas de levar avante o assunto das indemnizações tenham na prática ficado no papel. A primeira razão estará no facto de a entidade que é chamada a pagar a factura ser o Estado português, o que levanta logo a questão de serem uma vez mais os portugueses a desembolsar. E quando se pedem constantes sacrifícios aos “contribuintes”, se pagam do erário público milhões aos bancos, se restringem as verbas destinadas aos serviços sociais, etc., etc., fica difícil justificar mais uns quantos milhões — para benefício sobretudo de proprietários de bens vultuosos.
A segunda razão tem a ver com a própria justificação política de indemnizar os chamados “espoliados”. Se se considera que houve “espoliação”, ou, como agora diz o CDS na sua justificação, que as pessoas em causa “deixaram para trás os seus bens e outros direitos” (quais?) — então a direita deveria deixar-se de rodeios e ter a coragem de exigir que as compensações fossem pagas pelos novos Estados independentes.
Não o faz, claro. Não por lhe faltar a vontade, mas porque seria uma missão impossível — que, ainda por cima, traria outros prejuízos, como seja o azedar das relações diplomáticas e a complicação dos negócios entre o capital português e aqueles países.
Mais: se tal fosse tentado, os novos países teriam legitimidade acrescida para serem eles a exigir do Estado português compensações pela espoliação (sem aspas) praticada em cinco séculos de colonialismo, pela guerra colonial, pelos crimes de guerra, pelos crimes cometidos pelos colonos, pela devastação dos territórios, numa lista interminável de malfeitorias hoje praticamente caladas.
Por isto a direita se fica pelas tentativas, mantendo contudo a chama acesa.
Onde se insinua o ataque velado à descolonização é nisto: nas posições da direita, que o CDS agora recupera, o Estado português saído do 25 de Abril de 74 é posto na condição de réu, “culpado” pela descolonização, a ponto de ser “condenado” a indemnizar quem deixou as então colónias.
Isto converge com os ataques feitos desde sempre pelos colonialistas mais reaccionários que sonharam com uma via em que fossem impostas condições à independência dos novos países: brancos a manterem as suas propriedades, indemnizações pelos bens nacionalizados, manutenção de privilégios para os europeus que quisessem ficar. Como se isso fosse possível na sequência de uma guerra perdida em África e de um Estado em derrocada na Europa! E como se isso fosse justo!
Tem de ser dito o seguinte: independentemente do sofrimento individual que as mudanças históricas sempre causam, os colonos portugueses só o eram e só beneficiavam de supremacia sobre as populações africanas porque estavam protegidos por leis e privilégios do Estado colonial-fascista que os colocavam, apenas por serem brancos, acima dos africanos.
Vivendo remediadamente ou fazendo fortuna, sendo honestos ou não, vivendo do seu trabalho ou da exploração, todos eles tinham um estatuto que os naturais dos países colonizados não tinham.
A descolonização, conquistada a rios de sangue pelos africanos, veio repor alguma justiça na medida em que pôs termo a este estado de coisas. Mas apenas alguma justiça. Quem são afinal os espoliados?
www.jornalmudardevida.net
09
Jul18
GEORGETTE FERREIRA A PRIMEIRA MULHER A EVADIR-SE DE UMA PRISÃO FASCISTA
António Garrochinho
Georgette de Oliveira Ferreira nasceu em 25 de Junho de 1925, em Alhandra. Faleceu em Lisboa a 4 de fevereiro de 2017.
Deputada à Assembleia Constituinte
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Deputada à Assembleia Constituinte

Evadiu-se em 4 de Outubro de 1950 do Hospital de Santo António dos Capuchos em Lisboa, tendo sido a primeira mulher a fazê-lo.
Desejosa da sua independência, vai trabalhar para uma fábrica têxtil e mais tarde para uma oficina como costureira. Aí, organiza uma greve com vista à sindicalização das operárias costureiras e acaba por ser despedida da oficina. Filia-se na Juventude Comunista Portuguesa e em seguida no PCP. Corria o ano de 1944, os géneros alimentícios escasseavam e as lutas e as greves de mulheres contra a fome e pelo pão tomavam a forma de protesto nacional e também protesto contra a guerra.
Georgette participa na organização dessas grandes manifestações e, ao serviço do seu partido, passa à clandestinidade em 1945 e assim vive até 1949. Nas casas clandestinas do partido, faz trabalhos de secretaria, de organização e defesa da casa.
Em 1949 é presa em Palmela pela PIDE e levada para Caxias. Muito doente é hospitalizada no Hospital de Santo António dos Capuchos em Lisboa de onde se evadiu em 4 de Outubro de 1950. É a primeira mulher que se evade de uma prisão fascista.
Foi então viver para o Porto com Clementina Amália, outra destacada antifascista de Setúbal, numa parte de casa clandestina, adoptando o pseudónimo «Helena». Aí esteve até 1952. É novamente presa em 1957.
Adoece gravemente devido aos maus-tratos e negligência da PIDE, o que gerou uma grande campanha de solidariedade nacional e internacional exigindo a sua libertação.
Na sua primeira prisão, partilhou por alguns dias a cela com Maria Lamas, Virgínia Moura e Cecília Areosa Feio.
Certamente que esta vivência tão dura, tão sofrida em comum, forjou nelas laços de estima e cumplicidades que as suas vidas vieram comprovar.
Tal como Georgette, todas demonstraram ser mulheres solidárias com as outras mulheres, compreensivas e exultantes com o 25 de Abril porque, como nos dizia Georgette, a liberdade é o bem maior para a emancipação das mulheres e dos povos.
Georgette Ferreira é libertada em 1959 e vai para a Checoslováquia a convite da organização das mulheres daquele país, e lá se tratou durante três anos, curando-se das múltiplas maleitas causadas pelo brutal desumanidade da polícia política.
Até 1964 teve uma intensa actividade política no estrangeiro, na denúncia dos crimes e no apelo à solidariedade com as mulheres e os presos políticos.
Em 1962, participa na Assembleia de Mulheres pela Paz com Maria Lamas e Luísa Tito de Morais.
Nos Congressos Internacionais de Mulheres e nas organizações democráticas internacionais de mulheres representou muitas vezes as mulheres portuguesas.
A grande preocupação era então a guerra no Vietname e a luta das mulheres das colónias pela libertação. Nesses Congressos participaram, segundo recorda, Eugénie Cotton presidente da União das Mulheres Francesas e da Federação Democrática Internacional de Mulheres e Marie-Claude Vaillant-Couturier que foi também presidente da União de Mulheres Francesas e que tinha estado no campo de concentração de Ravensbruck, a norte de Berlim, onde entre 13 de Maio de 1939, dia em que chegou o primeiro comboio com 867 mulheres e 30 de Abril de 1945 (data da libertação pelo exercito soviético) terão estado encarceradas 150.000 mulheres, das quais 92.000 terão sido assassinadas[1].
A Revista Mulheres do Mundo Inteiro, órgão da FDIM que se editava em várias línguas, entrevistou-a em 1961, tinha então Georgette 36 anos. Retratava-a como “uma mulher miúda de cabelos negros, mulher doce, de olhar expressivo que travava em Portugal uma luta tenaz contra a ditadura (…)
No rosto viam-se gravados os terríveis sofrimentos passados nas masmorras portuguesas”[2]. Nessa entrevista, ao lado da Presidente do Comité das Mulheres da Checoslováquia, Georgette falou de si e do grande contributo da solidariedade internacionalista para a sua libertação, dirigindo-se particularmente às mulheres e às mães portuguesas, mas também às espanholas e gregas, igualmente vítimas do terror das prisões fascistas, que as limitava na liberdade e ofendia a dignidade de seres humanos.
Entre 1953 e 1988 fez parte do Comité Central do PCP. Actualmente é membro da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP).
A sua biografia prisional consta do processo 1144/49 – Proc n.º167/954 S. Investigação.
É uma das mulheres portuguesas da resistência ao fascismo cuja história vivida nas prisões e hospitais, na luta clandestina sempre ameaçada, é contada na primeira pessoa, em entrevista a Rose Nery publicada em 1975[3].
Deputada do PCP à Assembleia Constituinte pelo Círculo Eleitoral de Lisboa e depois, nas primeiras legislaturas de 1976 a 1985, ajudou a transpor na Constituição de Abril os desejos e as reivindicações das mulheres e dos trabalhadores e a fazer aprovar leis naquele que foi o período mais fecundo para uma legislação em prol dos direitos das mulheres e pela igualdade.
Sempre acompanhou a actividade do MDM.
Sempre esteve presente com uma palavra amiga. Jamais a sua memória deixou passar acontecimentos e datas marcantes do MDM.
Todas conhecemos a sua dedicação e ternura para com o movimento de mulheres. Todas sentimos as suas calorosas e confiantes palavras nas saudações de Georgette Ferreira ao MDM, seja no 8 de Março, seja em todos os seus Congressos. Vibrante, ela lá está.
Pessoalmente. Com a singeleza e a certeza de ser estímulo jovial e exemplo para as vindouras.
O MDM também a saudou e homenageou, num almoço em Alhandra, na CURPIFA, organizado pelo núcleo de Vila Franca de Xira dirigido por Luísa Vitorino, uma outra mulher feita com Abril.
Foi a 9 de Abril de 2006 onde, pela voz de Natacha Amaro, a homenagem a Georgette ganhou múltiplos sentidos, que ela generosamente estendeu a suas irmãs, à família, aos amigos. “O exemplo, a experiência e a história de vida da Sofia e da Georgette estão presentes. Resta-nos agradecer-lhes e continuar a luta”, porque elas “foram mulheres que contribuíram, com um enorme esforço pessoal, para a conquista da liberdade”[4].
Alhandra, terra de resistência e de luta, viu nascer muitas mulheres e homens que deram um contributo inestimável à construção da liberdade.
O crescimento da indústria e a intensidade da exploração confluíram nesta região, e em todo o Baixo Ribatejo, incrementando um forte movimento operário.
Aqui, como noutros pontos do País, as mulheres viveram tempos terríveis, foram vítimas de perseguições, assistiram às injustiças, fizeram grandes sacrifícios. Foi também em Alhandra, na década de quarenta, do século passado, que Georgette Ferreira ainda muito jovem e suas irmãs Sofia e Mercedes iniciaram a sua actividade política na luta pela liberdade e pela democracia, contra o fascismo que algemava o País. Aí “aprendi a compreender o que é o espírito revolucionário da classe operária, o seu anseio, cultura, e a sua capacidade para interpretar e aprender”, disse-nos na sua intervenção. “Foi também aqui”, lembrou, com emoção, “pela mão do nosso saudoso amigo, Soeiro Pereira Gomes, com participação da sua mulher, Manuela Câncio Reis, que nós despertámos para a cultura nas colectividades, para as zonas de leitura, e compreendemos como é importante dar ao nosso povo a cultura que o fascismo nos roubava (..) É com grande emoção que, aqui em Alhandra, depois de muitos anos, reencontro alguns amigos, mas também novas gerações, com a vontade, combatividade, esperança, que o nosso Abril vencerá!”.
Com ela, sempre muito próximas, as duas irmãs, também elas funcionárias do PCP, a Mercedes e a Sofia Ferreira, com quem Georgette partilhou e partilha a alegria e as dores mas também os ideais como alimento da sua vida. Georgette Ferreira agradeceu em nome das três mas dizendo-se avessa a homenagens, “porque a nossa contribuição na luta e na vida é uma coisa natural”. Finalmente saudou todas as mulheres “que de formas diferentes, prestaram a sua solidariedade clandestina, à nossa luta contra o fascismo”[5].
Não se pense que Georgette não teve um amor na sua vida. Também ela teve o homem da sua vida de quem gostou e amou.
Montaram casa para viverem os dois, mas pouco tempo depois ele foi preso e morreu logo depois. Foi bom mas durou pouco tempo, diz-nos ainda emocionada e com uma tristeza na voz e no olhar[6].
[1] La déportation, Edição de “Le patriot résistant” Federation Nationale dês Déportés et Internés Résistants, 10, Rue Leroux, Paris 16.ème,
[2] Revista da FDIM, Mujeres del Mundo entero, nº8, 1961.
[3] Rose Nery Nobre de Melo, Mulheres Portuguesas na Resistência, Seara Nova, 1975 (p.64-75)
[4] Palavras de Natacha Amaro, membro do Secretariado Nacional do MDM, em O Avante, 13 de Abril de 2006.
[5] O Avante, 13 de Abril de 2006
[6] Conversa de Georgette com Regina Marques em casa de Mercedes, em Setúbal, em 2 de Julho de 2014.
www.mdm.org.pt