O lamentável episódio da derrocada do telhado do Celeiro de São Francisco, em Faro, ilustra, de forma cristalina e veemente, todo o sentido dos meus receios e alertas, publicamente veiculados através de várias fontes e meios há bastos anos. Este edifício, de raríssima configuração arquitetónica e que atravessa as vicissitudes de vários séculos, transportando uma peculiar carga histórica, emana uma aura enigmática e mitológica que deveria, só por si, sensibilizar as autoridades com responsabilidade na preservação de um edificado que, além disso, está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1977 (estatuto de âmbito nacional).
Ter consciência histórica significa percebermos que aquilo que somos advém de um todo contínuo que vem sido transmitido e enriquecido através de gerações sucessivas, moldando indelevelmente o mundo atual em que vivemos. A memória é o fundamento da identidade.
As circunstâncias históricas que envolvem o Celeiro de S. Francisco, denominada originariamente Torre da Horta dos Cães, são deveras fascinantes e deveriam ser mais divulgadas já que envolvem uma série de episódios onde se cruzam importantes famílias farenses, artistas/arquitetos e circunstâncias da vida mundana.

Francisco Lameira relaciona-o com o mecenato do desembargador Veríssimo de Mendonça Manuel cujos descendentes se cruzam com a família dos Mascarenhas Figueiredo que se notabilizaram durante a epopeia dos Descobrimentos. Segundo este historiador de arte foi o mestre-canteiro Diogo Tavares de Ataíde o autor do Celeiro de S. Francisco.
Outro historiador de arte, Horta Correia, analisa as particularidades arquitetónicas de tão singular edifício aventando a hipótese da conceção octogonal inspirar-se na «Torre dos Ventos» construída em Atenas por Andronico de Cirros e referida por Vitrúvio na sua dissertação sobre as relações entre a orientação dos ventos e a salubridade urbana. Os ventos, em número de oito, estão na origem da «Rosa dos Ventos».
Tudo neste edifício é relevante: abóbada de aresta de oito panos «compondo a cobertura única do piso térreo com grande expressividade e excecional plasticidade» (Horta Correia); telhado constituído por oito águas de telha mourisca; cornija saliente e balançada em papo de rola; molduras de massa exceto nas das duas portas; pilastras em massa com base e capitel simulado e com minúsculas aletas junto à cornija; oito óculos de forma elíptica (alguns hoje entaipados); sete janelas retangulares e uma porta de verga reta virada a nascente, no piso superior.
Mas ainda há mais: «sobre a porta e tapando um dos óculos, em trabalho de massa, as armas dos Mascarenhas Figueiredo e Mendonça, integradas num enorme conjunto de decoração rocaille. De um e outro lado, ou seja nas faces sudoeste e noroeste, respectivamente, a figura de um Hércules com a legenda HERCULES e a representação de um índio com a legenda CABO DE BOA ESPERANÇA ADAMASTOR (…) Ambos revelam tendência para um expressionismo tardobarroco ou rococó» (Horta Correia).

Refere ainda este autor um facto relevante. No sentido originário da construção estaria o objetivo de erguer um edifício de «arquitetura de poder» e, portanto, de afirmação pessoal, criando um marco simbólico no contexto da cidade. Esta hipótese casa com a proeminente visibilidade que o edifício detinha no contexto da silhueta de Faro, facto que está expresso numa gravura com o perfil da cidade intitulada «Faro, the capital of Algarve» de 1813, e que por surpreendente coincidência sou possuidor de um exemplar. Na imagem, vista a partir da Ria, é patente a elegante e chã silhueta da cidade, donde sobressaem, da cércea média, vários edifícios monumentais como a Igreja do Carmo, o Colégio dos Jesuítas, a Sé de Faro, uma torre octogonal e o Convento das Freiras. Tal torre só pode ser a Torre da Horta dos Cães.
Nunca é demais refletir sobre a importância ancestral dos perfis urbanos como fatores de identidade e de carácter de uma cidade, assim como da hierarquização dos seus edifícios. Quando hoje em dia olhamos para Faro a partir da Ria Formosa compreendemos bem a dimensão da tragédia e da barbárie arquitetónica que caracterizam os tempos atuais.
Façamos agora um exercício de lógica simples: se um edifício com este valor arquitetónico, artístico e histórico tem sido votado ao mais degradante abandono por parte do proprietário (infringindo a lei), pela Câmara Municipal de Faro e pela Direção Regional da Cultura do Algarve, os responsáveis pela situação, o que não se passará com as centenas de casas que, não constituindo edifícios notáveis, fazem parte integrante do Centro Histórico de Faro? É fácil chegar à conclusão que estão totalmente à mercê das contingências atuais: ruína total ou parcial, especulação imobiliária e reabilitações assassinas, que não deixam um único átomo de testemunho histórico. Volto a repetir: Faro, Capital Europeia da Cultura, 2027? Só podem estar a brincar!
As nossas autoridades, cedendo à espetacularização crescente da sociedade, mostram-se incapazes de impor perspetivas culturais assentes nos seus redutos essenciais. Optam, antes, pela evanescência do espetáculo: festas, festarolas, folguedos e bailaricos! A ossatura, que constitui os centros históricos, representa o indispensável corpo onde o espírito pode encarnar, retendo, assim, a possibilidade de manifestação da alma. Não há cultura sem uma matriz sustentada.

A 3 de dezembro último publiquei, neste mesmo jornal, uma carta aberta ao presidente da Câmara Municipal de Faro, professor Rogério Bacalhau, em que o alertava com carácter de urgência para a situação dramática em que se encontra a zona histórica de Faro, sujeita, por um lado, ao abandono e à incúria e, por outro, às mais vis agressões e destruições, tendo a certa altura escrito o seguinte: «(…) não posso deixar de ficar perplexo com a total incapacidade que as sucessivas vigências camarárias demonstraram no sentido de a preservar, cuidar e promover. Isto aconteceu porque, infelizmente, nunca perceberam a transcendência que o património arquitetónico carrega em si». Ainda aguardo a resposta!
Março 22, 2018