Nesta primeira parte, acompanharemos a história do Tour desde sua concepção até a Segunda Guerra Mundial, quando a invasão alemã na França quase acabou com a competição para sempre.
L’Auto
O começo dessa história não é tão bonito como poderia se imaginar. A raiz da questão está no Caso Dreyfus, uma questão política que dividiu a França no final do século XIX e começo do XX. Alfred Dreyfus era um soldado francês de ascendência judia preso em 1894 sob a acusação de traição ao passar segredos militares franceses para a embaixada alemã em Paris. Dreyfus foi condenado naquele ano.
O caso esquentou mesmo com revelações em 1896 de que outro oficial do exército poderia ser o verdadeiro responsável. A França então se dividiu entre aqueles que acreditavam na inocência de Alfred e aqueles que o acusavam, além de traição, de uma série de crimes através de documentos falsos. Entre os crentes em sua inocência se encontrava o editor do primeiro jornal esportivo da França, Pierre Giffard e o seu Le Vélo. Em resposta ao apoio de Giffard a Dreyfus, um dono de montadora chamado Jules-Albert de Dion se decidiu por criar um novo periódico esportivo para competir com o Le Vélo, um que tivesse a força para derrubar o jornal pioneiro como os então concorrentes não tinham. Ele chamou sua publicação de L’Auto.
O L’Auto começou sob a batuta de Henri Desgrange, um conhecido ciclista e dono de um velódromo de ciclismo em Paris. Mas o sucesso não foi repentino e, em 1902, o jornal fez uma reunião de crise para discutir o que fazer para evitar o fracasso definitivo. Dentre os presentes à reunião estava o jovem Géo Lefèvre, um jornalista que ocupava o cargo de chefe do setor de ciclismo e ex-trabalhador do Le Vélo. Ele deu como ideia que o jornal organizasse uma volta ciclística de seis dias ao redor da França. Voltas como essa eram comuns na época para propagandear jornais esportivos, mas Lefèvre propunha uma de extensão nunca antes vista. Desgrange, embora inicialmente descrente, aceitou a sugestão. E assim começaram as preparações para fazer o primeiro Tour de France em 1903.
O Começo
O plano para o primeiro Tour de France era uma corrida em cinco etapas, saindo em Paris e parando em quatro cidades: Lyon, Marseille, Bourdeux e Nantes. A última etapa seria um retorno para Paris. Toulouse foi depois acrescentada ao circuito. As provas começariam durante a noite e se estenderiam até a tarde seguinte, com dias de descanso. Entretanto, isso se provou muito desgastante tanto física quanto financeiramente para a maioria dos ciclistas e apenas 15 se inscreveram. Desgrange então decidiu alterar levemente o formato, melhorar as premiações e oferecer uma ajuda de custo a todos os concorrentes que completassem em média 20 quilômetros em cada etapa. Com a premiação monstruosa oferecida, mais de 60 competidores, entre “profissionais” e pessoas comuns, participaram da primeira competição, onde Maurice Garin demonstrou uma grande dominância.
Diante da grande comoção causada pela primeira edição diante do público e dos competidores, Desgrange se mostrava decidido a fazer da edição seguinte, em 1904, a última. Esse medo se mostrou um tanto real diante de diversas trapaças por parte dos competidores e do fato do público chegar ao extremo de bater nos rivais de seus ciclistas favoritos durante as etapas. O campeão Garin chegou a ser desclassificado depois da conquista do bicampeonato e Desgrange anunciou que faria daquele o último Tour.
O medo de Desgrange, porém, não durou. Ele passou a planejar a competição do ano seguinte e se decidiu por onze etapas, todas acontecendo inteiramente durante o dia para tornar qualquer tipo de trapaça mais óbvia. Naquele ano, ao invés de usar o tempo de cada etapa para determinar o vencedor, a organização se decidiu por um sistema de pontos de forma a torna a competição mais simples. O favorito a vencer era René Pottier, um competidor famoso pela sua capacidade de escalada (ou seja, excelente nos momentos de montanha), mas ele saiu após a terceira etapa com uma tendinite. Outro grande favorito era Hyppolite Aucouturier, constante nos anos anteriores e que já havia vencido diversas etapas anteriormente. Ele, entretanto, terminou em segundo, perdendo para Louis Trousselier. Pottier retornaria no ano seguinte para ganhar a competição, essencialmente vencendo as etapas de montanha.
As duas etapas seguintes consagraram como campeão Lucien Petit-Breton, embora em 1907 ele só tenha superado Émile Georget pois este fez uma mudança ilegal de bicicletas que lhe custou uma punição que o jogou para o terceiro lugar. Em 1908, ele fez uso de seu conhecimento em mecânica para vencer, uma vez que os competidores tinham que realizar seus próprios reparos. Em 1909 o Tour viu seu primeiro vencedor estrangeiro: François Faber, de Luxemburgo.
Os anos de ouro
Nos anos seguintes, o Tour passou por alterações que foram construindo o formato que foi copiado posteriormente pelas demais grandes competições do ciclismo. Em 1910, foi incluída a primeira etapa numa grande montanha, em Tourmalet, nos Pirineus. Desgrange novamente estava descrente da possibilidade, mas foi convencido por Alphonse Stèines após esse último fazer um reconhecimento da região. Stèines, convicto de que a etapa aumentaria a popularidade da competição, mentiu no telegrama ao responder a Desgrange que as estradas eram satisfatórias e sem problemas, uma vez que ele mesmo havia se perdido na montanha após ter problemas com seu carro. Além de Tourmalet, mais três montanhas foram incluídas, todas juntas na décima etapa: Aspin, Peyrosourde e Aubisque.
A partir de 1913, a competição voltou a ser calculada pelo tempo em cada etapa, valorizando o esforço a longo prazo. Esse formato se sustenta até hoje, dando o grande prêmio da competição até os tempos atuais. Naquele ano o Tour viu Philippe Thys vencer o primeiro de seus três títulos. Ele voltou a se sagrar campeão em 1914, e era um dos favoritos a vencer no ano seguinte, mas o início da Primeira Guerra Mundial colocou o Tour em hiato durante cinco anos.
O entreguerras
O Tour voltou em 1919 com o término da guerra. O ano é visto com o o de nascimento da tradição da camisa amarela, acreditando-se que Eugène Christophe foi o primeiro a envergá-la, na décima etapa. O ano foi vencido por Firmin Lambot. Philippe Thys participou daquele Tour em péssimas condições físicas, mas voltou a treinar forte e conquistou seu terceiro título no ano seguinte, se sagrando o primeiro tricampeão da competição.
O período viu uma grande dominância de estrangeiros até 1930, com o italiano Ottavio Bottechia vencendo em 1924 e 1925 e o luxemburguês Nicolas Frantz em 1927 e 1928. Um único francês venceu o Tour nessa época: Henri Pélissier em 1923. A ausência de franceses entre os campeões durante tanto tempo gerou em Desgrange um medo de uma queda de interesse na competição, mas o efeito foi o contrário: O Tour ganhou uma monumental importância para as outras nações e centenas de fãs vinham de outros países para acompanhar a prova. Logo o Tour já era considerada a principal competição do ciclismo europeu.
Nos anos 30, os franceses voltaram ao topo do pódio com André Leducq e ali permaneceram por cinco anos seguidos, para o alívio de Desgrange. Naquele ano, o editor chefe do L’Auto e organizador da competição fez uma grande mudança no formato, proibindo as equipes comerciais e organizando os competidores em times nacionais e regionais. A grande mudança foi motivada pelo trabalho do então tradicional time Alcyon para fazer Maurice de Waele, competidor que adoeceu no meio da competição e chegou ao ponto de não conseguir ingerir nada sólido, vencer a competição através de um grande esforço coletivo. Desgrange abominava a ideia de um ciclista vencer sua competição dessa forma, ainda mais ao constatar a incapacidade física em que de Waele se apresentava. As equipes comerciais só voltariam ao Tour na década de 60. Desgrange criou ainda neste ano a Caravana de Publicidade, em que empresas podiam assinar um contrato para seguir o Tour com caminhões e carros com seus logos, fazendo propaganda de seus produtos.
Em 1933, foi integrada à competição o título de Rei da Montanha, conhecido pela camisa branca de bolinhas. Desgrange resolveu introduzir o prêmio para consagrar Vicente Trueba, um ciclista que era sempre o primeiro a alcançar o topo das montanhas da competição mas que não conseguia se dar bem na classificação gerada.
Em 1934, foi introduzida uma etapa contrarrelógio, em que cada competidor corre por conta própria, saindo com espaço de tempo entre cada largada. A ideia era introduzir um formato de etapa que diferisse das corridas comuns e permitisse que os competidores mais individualistas melhorassem sua classificação.
O Tour seguiu com esse formato até 1940, ano de mudanças gigantescas. Desgrange morreu por problemas de saúde naquele ano e o segundo em comando à época, Jacques Goddet, assumiu o posto de organizador da prova.
Mas eis que a Segunda Guerra Mundial estourou e logo a ocupação alemã da França começou. Durante a ocupação, os chefes da propaganda nazista expressavam a vontade do retorno da competição, ao que se depararam com a recusa de Goddet. O organizador viu então uma perseguição dos alemães ao L’Auto, que foi fechado. Na sequência, Goddet conseguiu através da justiça o direito de iniciar um novo jornal, o L’Équipe, mas não podia organizar o Tour uma vez que o direito para tanto fora retido pelo governo. O Tour só voltaria em 1947 para se consagrar cada vez mais como principal competição mundial de ciclismo – e o restante dessa história você acompanha amanhã aqui no
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