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POESIA E MÚSICA DA RESISTÊNCIA

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13
Dez16

Cidadelhe (Pinhel) (***)- O Calcanhar do Mundo é uma das mais belas aldeias de Portugal

António Garrochinho






Não sei quem me disse que Cidadelhe era uma aldeia única. Também ainda antes de a visitar li na “Viagem a Portugal”, de Saramago, que debita um extenso rol de elogios ao sítio.
Numa tarde invernosa de 2005 parto então em sua demanda. A estrada, que parte de Pinhel, é tortuosa depois de Azevo, passamos por um amplo descampado de fragões graníticos, sabemos nós de antemão que a existência de tal rocha obriga o rio Côa a fluir em desfiladeiro, o que é para nós prenuncio de panorama distinto.
E finalmente chego. Decepção. Mas então é isto o “calcanhar do mundo“? Uma aldeia banal, igual a todas as outras comezinhas!
Logo ali em conversa fiquei a saber que Cidadelhe se divide em dois, é o “Povo de Cima”, as Eiras, mais recente, e o “Povo de Baixo”, mais antigo.
A Ermida de São Sebastião
As Eiras têm de interessante a Ermida de São Sebastião, com alpendre, que protege uma pintura maneirista provincial representando o Calvário. Tem no seu interior um São Sebastião patusco, referido por Saramago, com seus enormes “abanos”, e que é uma composição menor de um santeiro de Castelo de Paiva (a senhora Rosário manda dizer ao senhor escritor que ficou desgostosa por este ter brincado com o santinho).
Está quase a chover, mas este viandante intrépido, vai ainda olhar de soslaio a “Aldeia de Baixo” e agora sim, aquieto a frustração de aqui ter vindo.



A Aldeia de Baixo

Diz o nosso Nobel, “a Aldeia é toda pedra. Pedra são as casas, pedra as ruas. Muitas destas moradas estão vazias, há paredes derruídas. Onde viveram pessoas, bravejam ervas.
O viajante maravilha-se diante de algumas padieiras insculpidas ou com baixos-relevos decorativos: uma ave pousada sobre uma cabeça de anjo alada, entre dois animais que podem ser leões, cães ou grifos sem asas, uma árvore cobrindo dois castelos, sobre uma composição esquemáticas de lises e festões”.




A humilde povoação cristalizou no tempo, por toda a banda, abundam artefactos rústicos e arqueológicos que já não existem nas aldeias portuguesas e que um citadino pouco versado em ruralismo não ousa entender e designar. Este conjunto ancestral está em estado de abandono e declínio, mas mesmo assim tem imensa beleza poética.
São as habitações rurais arcaicas, algumas redondas de apelo castrejo, os pombais colocados estrategicamente, as manjedouras (tantas como eu nunca vi), os arados, as charruas, as sepulturas antropomórficas transformadas em lagaretas (uma rara lageada) e que servem as galinhas, é a igreja com belos caixotões hagiológios do século XVII, são as inúmeras marcas de religiosidade… e é o “cidadão”.
A propósito deste voltemos a José Saramago. “O viajante medita no singular amor que liga um povo tão carecido de bens materiais a uma simples pedra, mal talhada, roída pelo tempo, uma tosca figura humana em que já mal distinguimos os braços, e confundem-se os pensamentos, vendo como é tão fácil entender tudo se nos deixarmos ir pelos caminhos essências, esta pedra, este homem, esta paisagem duríssima. «Que se sabe da história do Cidadão?», perguntou o viajante. «Pouco. Foi encontrado não se sabe quando, numas pedras de além» (faz um gesto para a invisível margem do rio Côa)”.
Eu também encontro o “além”; é um outeiro arredondado, num nível inferior ao “povo de baixo”. É o “Castelo dos Mouros”. Daqui a pouco escurece e chuvisca, tudo em meu redor está triste, não se vê vivalma. Ficou a promessa para mim mesmo de ir ao “além”.
Voltei a Cidadelhe quando a aldeia reverdescia na força da Primavera.
A Aldeia de Baixo, que é habitada é magnífica com esta luz, e conheço a dona Laura, referida no livro de Saramago, que passa a ser a minha cicerone.






Castelo dos Mouros e o Poio do Gato
Agora chegou a vez de ir ao Castelo dos Mouros. Olho a colina do alto da aldeia sem tempo e sinto-me acometido dessa plenitude de quem olha o oceano da falésia. Antes de partir as senhoras pedem-me que não vá, os homens não podem estar no “Castelo” de noite. Mas ainda tenho mais umas duas horas de Sol, que estranho medo se apossou das minhas amigas?
A viagem dista até ao “além” cerca de 15 minutos, passo por um pombal gigantesco, deambulo por entre carvalhos, sobreiros, azinheiras, carrascos, tomilhos, oregãos, estevas, azedas… A natureza aqui é deslumbrante na sua biodiversidade mediterrânica.
As placas indicam-me o “Centro do Castelo”, a “ Forca dos Lusitanos” e o “Poio do Gato (**)”; é para aqui que me dirijo.
Eis o rio Côa abismal! Estou perante um profundo vale encaixado que atinge os 250 metros a pique. O “rio mágico”, bramidor e enfurecido, peleja contra as ciclópicas escarpas graníticas. Em Santa Comba o granito da lugar ao xisto e então o rio das “pedras mágicas” serena ao lidar com margens menos declivosas devido à maior brandura litológica. É um dos desfiladeiros mais impressivos que vi (e saibam os leitores que sou um geólogo com alguma experiência). Penso, contemplo e não esqueço. Um grifo-dourado voa à minha frente, contrasta com o tom cinza do granito, subitamente, dá duas voltas em círculo fechado e desaparece na curva do rio.
Volto para atrás e ignorando a “Forca dos Lusitanos”, embrenho-me no “Centro do Castelo”- a experiência é excepcional.
É um raro bosquete mediterrâneo; e ao baque dos meus passos, estou à espera de ver surgir  por detrás de um “barroco” algum druida celta com a sua foice mágica. É uma miríade de pormenores sensoriais neste túnel de vegetação. É também uma viagem solitária dentro de mim.
São pedras almofadadas, colunas romanas, lintéis, frisos, moinhos… e numa clareira tropeço e descubro a minha primeira gravura rupestre num granito fragmentado; um antropomorfo com o seu arco retesado e que poderá ser da Idade do Bronze ou do Ferro. Lembro aos leitores que nos encontramos no extremo sul do Parque Arqueológico do Vale do Côa (*****), classificado como Património Mundial da UNESCO em Dezembro de 1998 e estou próximo das importantes Gravuras e pinturas rupestres da Faia que estão instaladas no fundo do rio.



O “Castro” teve muralha, que ainda existe em alguns panos e foi habitada desde a idade do Bronze (entre XIII a X  a c.). Foi também povoado romanizado e fazia parte do território da civitas de Aravos (actual Marialva).
O “Castelo dos Mouros” é um local transcendente e mágico, de grande riqueza arqueológica, paisagística e natural. É a entrada meridional do mais belo museu ao ar livre da Humanidade
Sentimento semelhante, do tipo mistérico, é possível ter, por exemplo, em São Pedro de Vir-a-Corça (**) em Monsanto (***).
Cidadelhe também é Património Mundial da Humanidade
As Gravuras e pinturas Rupestres da Faia datam entre o Paleolítico e a idade do Ferro. Estas são caso único no contexto do vale do Côa, uma vez que, em alguns casos, coexistem motivos gravados com pinturas paleolíticas em suporte granítico. As pinturas estão normalmente resguardadas dos agentes erosivos em cavidades.
Cidadelhe é importante, porque foi aqui que se iniciou a descoberta do “Vale Sagrado”: As gravuras e pinturas da Faia foram identificadas pela primeira vez por Francisco Sande Lemos quando procedia ao estudo de impacte ambiental encomendado pela EDP, estudo que precederia as obras de construção da barragem para aproveitamento hidroeléctrico do rio Côa. Na sequência das recomendações desse estudo, foi constituído pelo IPPAR o Projecto Arqueológico do Côa, coordenado por Nelson Rebanda, que veio a identificar as primeiras gravuras paleolíticas da Canada do Inferno. Já fui a Cidadelhe várias vezes e nunca pude visitar as gravuras devido a sua inacessibilidade.







Cidadelhe e o Pálio Veneziano
Cidadelhe tem um pálio famoso, bordado a ouro e seda, em veludo carmesim típico de Veneza, que é carinhosamente guardado numa casa particular, em absoluto segredo e apenas no Domingo de Páscoa, durante a Procissão do Santíssimo, pode sair à rua. É uma das relíquias da terra; talvez eu ainda não mereça a sua contemplação, mas o viajante não entristece, porque Cidadelhe tem muito para reparar, sentir e pensar.
Uma curiosa lenda refere que os homens não podem estar no Castelo dos Mouros depois de anoitecer, porque serão atraídos para infindáveis prazeres sensuais pelas mouras e desaparecerão para sempre. Eu confesso que nunca me aventurei pelos caminhos do castelo dos Mouros de noite porque depois de morto, nem vinha nem horto. Provavelmente na lenda está presente a reminiscência de um qualquer culto pagão.
Sempre que posso vou até a Cidadelhe, com companhia para ser cicerone, ou sozinho para me sentar no Poio do Gato, para olhar para aquela paisagem assombrosa e pensar nos pontos de referência que me moldaram e pensar nos biliões e biliões de acasos que permitem que eu esteja aqui, e pensar nos milhares de homens que habitaram esta remota aldeia do mundo, desde o Paleolítico até a actualidade, nas suas alegrias, dores, projectos, crimes, remorsos, aventuras, religiões, batalhas, e dialogar ainda com os suicidas que se sentam ao meu lado e que ao longo dos séculos aqui desapareceram, eles narram-me as suas angustias e eu tento decifra-lhes o quanto a vida é bela e que o Inferno somos em parte nós.
Cidadelhe tem das mais belas gravuras de Arte rupestre ao ar livre, declaradas Património Mundial da Humanidade; possui um castro riquíssimo em evocações arqueológicas e mágicas; contem um mirante colossal para as escarpas verticais do rio Côa; tem uma pequena aldeia rústica, histórica e literária, verdadeiramente rara e imortalizada por Saramago; e tudo isto rodeado por um belíssimo ambiente natural. Infelizmente são raros os portugueses que a conhecem. Cidadelhe e o seu ambiente envolvente, é a par de  Marialva (***), Monsanto (***), Linhares da Beira (***), Sortelha (***) e Monsarraz (***), uma das mais belas aldeias de Portugal. Cidadelhe é a Aldeia da nossa vida – tirando a natal, de quase todos os visitantes que a descobrem e eu como citadino original aceito esta dádiva.


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