03
Set16
Morreu Maria Isabel Barreno, uma das “Três Marias” - Foi uma das autoras de Novas Cartas Portuguesas, uma das obras mais perseguidas pela ditadura e que abriu caminho para o debate sobre a igualdade de género.
António Garrochinho
A investigadora e escritora Maria Isabel Barreno, que foi uma das "Três Marias" juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, morreu este sábado, aos 77 anos. A notícia foi avançada pelo Expresso, sem citar fontes, e confirmada ao PÚBLICO por uma amiga. A cerimónia de cremação está marcada para este domingo, às 17h, no cemitério dos Olivais.
Apesar da sua obra prévia, foi com as Novas Cartas Portuguesas, que escreveu a seis mãos com com Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, em 1972, que Maria Isabel Barreno se tornou um nome incontornável da literatura portuguesa. O livro, acusado de pornografia e perseguido pelo Estado Novo, viria a estar no centro do processo que ficou conhecido como as "Três Marias". O julgamento durou dois anos e foi seguido de perto pela imprensa e pelos movimentos feministas internacionais, que organizaram manifestações de protesto juntos às embaixadas e consulados portugueses em Londres, Paris e Nova Iorque. A conclusão do caso ocorreu já depois da Revolução de 25 de Abril de 1974 e as três escritoras foram absolvidas.
Maria Teresa Horta (à esquerda) e Maria Isabel Barreno (à direita), em 2010
"Quando escrevemos as Novas Cartas Portuguesas, sabíamos que a obra em si já era uma ousadia, independentemente do vocabulário que viéssemos a usar – mas era o que nos interessava escrever naquela altura e por isso fomos para diante", recordava Maria Isabel Barreno ao PÚBLICO em 2009. A ideia de o livro acabar em tribunal, no entanto, não lhe passara pela cabeça: "Nunca pensei que o regime – até porque estávamos em pleno marcelismo e havia a ideia de que a abertura era outra – caísse na asneira de nos levar a tribunal. O destino mais comum dos livros era serem apreendidos, e até havia livrarias especializadas em livros proibidos, ninguém imaginava que o regime voltasse a cometer o erro que tinha cometido anos antes com a Natália Correia [condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em 1966]."
“Nas novas cartas que as três Marias escreveram anonimamente, diversas vozes falam da condição da mulher, da sua submissão à ordem patriarcal e burguesa, de violência doméstica e de género, de aborto, violação, incesto, pobreza, censura, e de expressão sexual feminina”, escreveu o PÚBLICO em 2010, a propósito da reedição da obra em Portugal.
As Novas Cartas Portuguesas adquiriram o estatuto de tratado sobre os direitos das mulheres em Portugal, mas acabaram por extravasar essa intenção inicial. “É um libelo contra todas as formas de opressão”, dizia ao PÚBLICO a escritora Ana Luísa Amaral, autora das anotações à obra na reedição de 2010.
Mas do ponto de vista do feminismo, que Maria Isabel Barreno inscreveu insistentemente na sua obra literária, a autora tem uma outra obra de referência: A Morte da Mãe. Escrito ao longo da década de 1970, o livro veio a ser publicado apenas em 1989. É um importante estudo sociológico e filosófico sobre a evolução histórica da situação da mulher na sociedade. O editor da Caminho, Zeferino Coelho, considera que é o melhor da escritora, merecendo "figurar numa biblioteca do século XX”, disse ao PÚBLICO. É um “livro extenso e muito inteligente sobre a condição da mulher”, onde Maria Isabel Barreno faz “uma revisão de toda a problemática da mulher com muita inteligência” e com “uma escrita que serve essa inteligência”. Foi isso que mais impressionou o editor que o publicou, embora não fosse dele a primeira edição.
Também o editor João Rodrigues, da Sextante, que em 2009 publicou aquele que viria a ser o último livro da autora, Vozes do Vento, sublinha que Maria Isabel Barreno “foi mais do que uma das 'Três Marias'": "Era uma ficcionista com uma voz própria muitíssimo interessante, de uma sobriedade enorme. O romance e os contos são excepcionalmente bons”, disse ao PÚBLICO.
Maria Isabel Barreno nasceu em Lisboa em 1939. A leitura foi, como dizia, uma paixão precoce, motivada por uma doença aos seis anos. Começou por escrever poemas, que nunca publicou. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, foi jornalista (chegou a ser chefe de redacção da edição portuguesa da revista Marie Claire) e conselheira na área cultural da embaixada portuguesa em Paris, onde se radicou, tendo terminado funções com o Governo de Durão Barroso.
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