07
Dez16
Um escândalo infamíssimo: as damas de contrabando que na verdade eram homens-mulheres
António Garrochinho
Retrato-robô de Manuel da Silva Moreira, alcunhado de A Tentadora, feito através de descrição publicada nos jornais
Era do conhecimento público, mas fechavam-se os olhos. Até que uns congressistas se queixaram de terem sido seduzidos por mulheres que eram homens. A polícia acabou por prender quase uma vintena de “damas de contrabando”. Manuel Moreira, a Tentadora, foi o criminoso escolhido pelas autoridades para servir de exemplo. Esta é a quinta e última história de uma minissérie do “Crime à Segunda”, no intervalo de mais uma temporada de criminosas portuguesas
É um homem de 43 anos, muito alto e magro, calvo e de matacões. Tem voz de soprano e modos adamados. Manuel da Silva Moreira era assim descrito pelos jornais meses após a célebre rusga que pôs Lisboa a falar, durante quase uma semana, das “damas de contrabando”. Mais conhecido por “A Tentadora”, foi um dos 16 presos por essa ocasião: explorava uma hospedaria com quartos à hora e prostitutos residentes - por isto esteve preso seis meses, pagou uma multa e perdeu os seus direitos políticos por cinco anos.
A Tentadora, assim alcunhado talvez por não ter dificuldade em seduzir homens, terá sido o preso das rusgas de fevereiro de 1895 que sofreu a maior condenação. A maioria dos detidos, depois de passar pelo juiz Francisco Maria da Veiga — o célebre magistrado que fumava por um cachimbo em forma de mulher nua e era implacável na perseguição aos republicanos quando reinava dom Carlos —, ficará a aguardar julgamento em liberdade, mediante o pagamento da abonação de identidade. Nos meses seguintes, serão quase todos considerados vadios, condenados a seis meses de cadeia e multados em cerca de 30 mil réis, por viverem “à custa de mulheres de má nota” ou por se vestirem com trajes de mulher. E no cadastro todos terão a palavra vadio.
O julgamento de Manuel da Silva Moreira não demorou. Ficara preso, assim como outros dois exploradores de hospedarias, e de nada lhe serviu afirmar-se cozinheiro de ofício e negar o crime. Em maio, no tribunal da Boa-Hora, o juiz sentenciou-o com metade da pena de prisão prevista no código penal de 1886 para “toda a pessoa que habitualmente excitar, favorecer ou facilitar a devassidão ou corrupção de qualquer menor de vinte e um anos, para satisfazer os desejos desonestos de outrem”, mas não o poupou quanto à inibição de ter um emprego ou funções públicas, dignidades, títulos, nobreza ou condecorações; à incapacidade de eleger, ser eleito ou nomeado para quaisquer cargos públicos; ou à de ser tutor, curador, procurador em negócios de justiça, ou membro do conselho de família.
A TENTADORA, A GATA, A CORTICEIRA, A VASSOURA DOS SUMIDOUROS, A PORTIMOA, A MULATA DOS CAMARÕES, A MARQUESINHA DO INTENDENTE, A PACA…
A Tentadora, de quem pouco mais se sabe, foi apenas um dos muitos presos pela polícia administrativa, um dos cerca de 20 que esta tentou, em vão, levar ao juiz no dia 15 de fevereiro. Nessa manhã, verificou-se uma romaria de curiosos para ver “os vadios que andavam vestidos de mulheres” e foram parar às ordens do governador civil Eduardo José Seguro. Mas estes estavam no calabouço n.º 3, ao fundo do pátio interior, portanto, só os outros presos tiveram oportunidade de assistir à entrada dos detidos de cabeleiras, fatos garridos e caprichosos, luvas brancas de quatro botões e rostos cobertos de pó de arroz.
No calabouço n.º 5 estavam presas mulheres acusadas de roubo e de ofensas à moral que aguardavam serem remetidas para juízo, como se dizia. E elas não pouparam os travestidos, de quem os próprios polícias riam a bom rir. “Estas infelizes que, segundo parece, têm grande zanga aos vadios presos, quando eles saíram para irem à presença do juiz Veiga fizeram-lhe uma montaria enorme, que foi correspondida por todos os presos dos outros calabouços no meio de estrepitosas gargalhadas dos indivíduos que estavam no pátio”, contou O Século.
Dizia ainda o diário de Silva Graça que eles se julgavam verdadeiras mulheres e deixavam “deslizar dos lábios um sorriso estonteante”, causando “vertigens a quem os admirasse”. Estes “homens-mulheres, à força de andarem com os trajes femininos, têm gestos meneiros e voz de verdadeiras damas, damas de contrabando, é claro". Os nomes e as alcunhas ficaram para a posterioridade, recorde-se aqui as segundas: a Tentadora, a Gata, a Corticeira, a Vassoura dos Sumidouros, a Portimoa, a Mulata dos Camarões, a Marquesinha do Intendente, a Paca, a Maria dos Tamancos ou das Tairocas, a Carapeta, a Maria Pires ou a Badalhoca, a Dona Passos, a Gorda de São Paulo, a Palmirinha, a Calhandra e a Senhora das Nicas.
Pelas quatro horas dessa tarde de 15 de fevereiro já eram milhares as pessoas que se juntavam à porta do Governo Civil e vias limítrofes, ou seja, da travessa da Parreirinha, mais tarde rebatizada de rua do Capelo, até à rua Nova de Almada, onde se situava o Tribunal da Boa-Hora. Todavia, os curiosos não chegaram a pôr-lhes a vista em cima e a enchê-los de impropérios como fariam no dia 16, à porta do tribunal, quando finalmente, meio às escondidas, os presos foram acusados. O governador temeu pela integridade de guardas e presos, mas alguém lhes fez ver ser “altamente ridículo fazer acompanhar os vadios por uma força enorme de polícias e de contrário podia a multidão assaltar o grupo de presos”, portanto, apenas os mudaram de calabouço para que o n.º 3 fosse desinfetado.
O juiz Veiga numa foto publicada em 1907 na ilustração Portuguesa, que a Wikipédia reproduz
DR
O temporal afetava diversas regiões do país, entre as quais a da capital, e as chuvas estavam a fazer tantos estragos que o cardeal patriarca ordenou que se fizessem três dias de preces em todas as paróquias e conventos. Mas uma boa parte dos lisboetas não se deixou intimidar pelo mau tempo e encheu a zona do Chiado. Queriam ver as damas de contrabando que se diziam “camareras”, ou os homens-mulher, ou ainda os “Homens ‘doublés' de camareras", como titulava o Diário Ilustrado, justificando: “Há manifesta confusão de línguas no título desta notícia, mas não a havia menor, de trajes, num café de centésima ordem, com sede na rua dos Poços dos Negros”.
A multidão tomou tais proporções — O Século fala em três mil pessoas, os restantes em milhares —, que as autoridades recearam levar os presos até à Boa-Hora. “O facto é tristemente significativo e eloquente: abre, entre nós, uma exposição de arte e vão lá raros, esses mesmos quase sempre por via de instantes pedidos. Há uma conferência científica e o único assistente é, por via de regra, o orador. Aparece uma revista literária, cifram-se nos colaboradores. No nosso meio, enfim, não há gente que se interesse por arte, por letras ou por ciências”, queixava-se o jornal A Vanguarda, dirigido pelo antimonárquico Alves Correia.
“O empresário de uma exposição de vistas pornográficas tem, porém, sempre a certeza de ter lucros. O editor que atire à publicidade com leitura só para homens enriquece. Cremos ainda que não há exemplo de ter quebrado um café de ‘camareras', apesar de os haver aí aos centos”, dizia ainda o periódico republicano, que foi aquele que mais adjetivou a operação policial e todos os intervenientes, titulando: “Lisboa Devassa. Um escândalo infamíssimo. Degradações humanas. Homens travestidos em mulheres”.
Locais onde decorreu a rusga de dia 13 de fevereiro de 1895, tendo resultado em pelo menos 16 presos, 13 dos quais estariam vestidos de mulher, o que já de si era crime
Mas como é que, repentinamente, se sucederam rusgas para tratar de uma situação à qual as autoridades fechavam os olhos desde sempre? No Governo Civil foi entregue uma carta anónima que referia a casa de uma tal Maria José, na rua dos Poços Negros, onde "existiam umas camareras de contrabando, misturadas com profissionais verdadeiras”, explicou o Diário de Notícias, adiantando, na edição de 14 de fevereiro, que a polícia iria estender a rusga a mais casas onde constava que “se acoitavam outros indivíduos nas mesmas condições”.
Ao que parece, agora de acordo com o jornal O Século, essa carta teria sido escrita por dois lavradores da província (A Vanguarda afirmaria ser um deles congressista) que, deslocando-se à capital, tinham entrado no café Maria José para tomar uma bebida e passar alguns momentos de prazer em troco de gorjetas. Terão ficado rendidos às camareiras, logo à entrada, tanto que dispensaram as mesas e pediram um gabinete para ficaram “mais à-vontade”.
“Quem entrasse no café e visse a espanhola da pandeireta, com a sua mantilha branca de rendas, posta com arte, vestidos garridíssimos sobre um espartilho bastante comprimido até tornar a masculina cintura numa verdadeira cinturinha de vespa, a sua ilusão era completa, não deixando dúvidas de que se estava em frente de uma guapa andaluza... Paca, se chamava, e todas as noites tinha bastantes admiradores, cuja ilusão perdiam, ao saberem pelas camareiras a valer, que ela era ele...", contou o Diário de Notícias. Quando for presa, a Paca, como de hábito, não proferirá uma frase sem primeiro dizer: “Está quieto ó coiso, não me enguices”.
Já no gabinete, os queixosos começaram a ser assediados por duas camareiros, diga-se assim, penteadas à espanhola, de cravos de papel no cabelo e mantilhas pela cabeça. Contou A Vanguarda, com mais despudor do que os seus colegas que as duas encheram os clientes “de amabilidades e carícias”. Só depois aqueles dirão que desconfiaram logo da primeira “esbelta criatura com trajos femininos”, cujo rosto “denunciava um mariolão do sexo forte”.
UM ENORME MOCETÃO VESTIDO DE MULHER E DE VOZ AFLAUTADA
Na noite de 12 de fevereiro, deslocou-se ao café um elemento menos conhecido da polícia administrativa. À paisana, o polícia entrou no estabelecimento de Maria José de Barros, sentou-se numa mesa e aguardou, como qualquer outro cliente, que o fossem servir. Esperou pouco, até aparecer “uma desenvolta camarera de mantilha” que lhe perguntou com voz aflautada “que toma, meu senhor?”. Dois dias depois, quando noticiar a rusga de 13 de fevereiro, O Século escreverá: “Será escusado dizer que era um enorme mocetão vestido de mulher que assim falava”.
Perante o facto comprovado, a polícia foi em força, na madrugada seguinte, ao café da rua dos Poços dos Negros e prendeu de uma assentada perto de uma dezena de homens. Mas levá-los para os calabouços do Governo Civil, embora a distância fosse curta, revelou-se o cabo dos trabalhos. “O senhor polícia não me bate, não?! Olhe que eu não sou dos que agridem a polícia”, ouvia-se, entre gritos e risos.
A dada altura, escreveu o jornalista de O Século que acompanhou a rusga, o polícia encarregado de escrever os cadastros interrogou um dos “vadios” sobre a idade. Este, que aparentava uns 40 anos, respondeu 19. “Dezanone??”, duvidou o polícia. “Sim, senhor, dezanove anos! Porquê, pareço, porventura, ter mais?”, respondeu-lhe o detido. A acreditar nos registos, com exceção de Manuel Moreira, a Tentadora, já sénior, as idades dos presos oscilavam entre os 17 e os 30 anos.
Quando perguntaram a José Pereira Pinho, conhecido por A Gata, qual era a sua ocupação, “com a maior serenidade” este respondeu ser camareira. E mostrando o polícia admiração, retificou: “Ora… Não sou bem camareira porque nasci homem, senão era a valer”. José Pinho será um dos que se fará fotografar vestido à espanhola para os registos da polícia e verá o seu fato apreendido, o que aliás sucedeu a todos os outros, entre estes alguns trajes de varinas, capotes e lenços.
"Aos presos foi apreendida grande porção de retratos, em alguns dos quais ele apareciam vestidos de mulheres. Noutros figuravam pessoas das suas relações, algumas delas muito conhecidas em Lisboa e de certa categoria social”, noticiou A Vanguarda. O caso terá ficado por algumas condenações apenas, já que “entre os nomes que o inquérito revelava e cujo número crescia de dia para dia achavam-se muitas pessoas de destaque. O escândalo aumentava a olhos vistos e para lhe pôr cobro foram mandadas cessar as investigações de súbito”, como deixou escrito o professor de medicina legal Asdrúbal de Aguiar, que abordou o caso no livro “Homossexualidade Através dos Tempos”, publicado no início do século XX.
CONGRESSISTA ENGANADO POR UM HOMEM QUE LHE DISSE PST!
A gota de água foi a queixa do café da rua dos Poços de Negros, que, aliás, mesmo passando a ser obrigado a fechar às dez da noite, redobrou o volume de negócio com a “imensa gente” que ali passou a ir “para ver onde se reunia a trupe”. Mas já tinha havido outra importante queixa, aquela do congressista, também provinciano, que ficou encantado com a dama da janela da rua do Arco da Bandeira, agora chamada dos Sapateiros, cujo proprietário era Casimiro Carvalho, de alcunha A Maria dos Tamancos. O caso passou-se dias antes das rusgas e nos jornais apareceu uma pequena notícia, mais reivindicativa de providências do que informativa.
O tal anónimo congressista, neste ano de 1895 em que o rei decidira mandar fechar o Parlamento e deixar o seu primeiro-ministro João Franco governar em ditadura, viu à janela de um terceiro andar uma mulher “que o chamou com o tradicional pst!” Sem desconfiar de nada, subiu ao encontro da cara que tanto lhe agradou. Aí viu-se numa sala cheia de mulheres, foi o que lhe pareceu. “Depois de cenas que não queremos nem podemos deslindar, compreendeu o ingénuo provinciano que as criaturas não eram mulheres, mas homens”, contou A Vanguarda. Apesar de “vexado, humilhado e envergonhado”, resolveu fazer queixa à polícia e ao gabinete dos repórteres que existia no Governo Civil.
E foi assim que, a seguir à rusga ao café Maria José, a polícia se dirigiu à rua do Arco da Bandeira, à rua das Gáveas, à do Norte, à travessa da Água da Flor, à rua Augusta, onde sabia existirem hospedarias ou casas de prostitutas que, habitualmente, albergavam alguns dos denominados “homens-mulheres”. Foi efetuada mais uma série de prisões. Dois dos donos de bordéis, de seu nome Emílio e Pepe, desapareceram de circulação depois de serem identificados. Portanto, apenas ficaram presos os suspeitos de lenocínio Joaquim Mouzara Herrera, cuja alcunha os jornais acharam muito extravagante para a publicarem, Casimiro Carvalho e Manuel da Silva Pereira, que explorava uma hospedaria no segundo andar do n.º 30 da rua do Arco do Marquês do Alegrete, onde 26 anos depois seria inaugurada a sede do Centro Comunista de Lisboa.
Nas suas memórias, Raul Brandão afirmava que “Lisboa foi sempre, como Nápoles, uma cidade de pederastas... Desde o marquês de Valada até esse homem ilustre que morreu noutro dia, quantos nomes a citar! Escritores, aristocratas jornalistas…“ E lembrava ainda o escritor que, poucos anos antes de 1917, havia no Rossio o quiosque do tio Pedro, onde à noite, nos taipais, se pendurava uma lanterna com dois vidros de cores, um vermelho, outro roxo. “Quando um fanchono passava e dizia: ‘boas noites, tio Pedro’, logo o velhote mudava o vidro vermelho para o roxo, o que queria dizer fanchono à vista – prevenindo assim os outros que estavam no Rossio”. Fanchono era outra designação usada para os homossexuais masculinos, os quais eram apelidados de bagaxas quando se prostituíam.
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