A Europa está doente. Qual a profundidade da doença e quais as razões da doença são questões nem sempre fáceis de responder, são perguntas que nem sempre são de fácil resposta. Mas entre os diversos sintomas três deles são conspícuos e inter-relacionados. O primeiro e mais familiar, é a degenerativa deriva da democracia em todo o continente europeu, de que a estrutura da UE é ao mesmo tempo a sua causa e a sua consequência. O elenco oligárquico das suas disposições constitucionais, uma vez concebidas como um patamar provisório para uma soberania popular de escala supranacional a alcançar tem-se, ao longo do tempo, firmemente endurecido. Os referendos não são regularmente autorizados, se eles se cruzam contra a vontade dos governantes. Os eleitores cujas opiniões são desprezadas pelas elites que evitam as assembleias nacionais que nominalmente representam , levam a que os dirigentes em exercício caiam a cada eleição que se faça. Os burocratas que nunca foram eleitos policiam os orçamentos dos parlamentos nacionais sem que mesmo se tenha dado nenhuma transferência de poderes. Mas a União não é uma excrescência dos Estados-Membros o que, de outra maneira, até poderia ser saudável. Isso reflecte, tanto quanto se aprofunda, as tendências de longo prazo que a mesma contém. A nível nacional, praticamente em todos os lugares, os executivos procuram domesticar ou manipular as legislaturas cada vez com mais facilidade ; os partidos perdem sucessivamente militantes; os eleitores perdem a crença de que eles contam para alguma coisa, da mesma forma que as opções políticas se reduzem cada vez mais e as promessas de diferenças diminuem ou desaparecem nas assembleias legislativas ou nos gabinetes ministeriais.
Com esta generalizada regressão social e política veio uma corrupção generalizada da classe política, um tópico em que a ciência política, suficiente faladora sobre o que na linguagem da ética se chama défice democrático da União, fica normalmente silenciosa. Para estas formas de corrupção… ainda tem que se encontrar uma sistemática taxonomia. Há uma corrupção pré-eleitoral: o financiamento de pessoas ou de partidos a partir de fontes ilegais – ou legais – contra a promessa, expressa ou tácita, de favores futuros. Há uma corrupção pós-eleitoral: o uso do poder para obter dinheiro por desvio de rendimentos, ou luvas sobre contratos. Há também a compra de pessoas ou de votos nas assembleias. Há o simples roubo do erário público. Há a manipulação sobre credenciais para ganhos políticos. Há enriquecimento por abuso de cargos políticos, mesmo após a saída do cargo , bem como durante ou antes de o ocupar. O panorama desta corrupção a é impressionante. Para se apresentar um fresco do que se acaba de afirmar poderíamos começar com Helmut Kohl1, líder da Alemanha durante dezasseis anos, que acumulou na altura qualquer coisa como 2 milhões de Marcos em fundos secretos vindos de dadores ilegais cujos nomes, uma vez que o tema foi conhecido, Kohl se recusou a revelar por medo que as benesses que tinha recebido viessem à luz do dia. Do outro lado do Reno, Jacques Chirac, presidente da República francesa, cargo ocupado durante doze anos, foi condenado por desvio de fundos públicos, abuso de poder e conflitos de interesses, uma vez que a sua imunidade chegou ao fim. Também não sofreu qualquer penalização. Estes foram os dois políticos mais poderosos de seu tempo na Europa. Um olhar sobre a cena desde então é suficiente para dissipar qualquer ilusão de que eles eram, como corruptos, eram uma excepção.
Na Alemanha, o governo de Gerhard garantiu um empréstimo de mil milhões de euros à Gazprom para a construção de um gasoduto no Báltico, a poucas semanas de abandonar o seu cargo de Chanceler e aparecendo depois na folha de pagamento da Gazprom com um salário maior do que aquele que recebia quando governava o país. Desde a saída de Schroeder, Angela Merkel já viu dois presidentes da República em demissão forçada, renunciando ao cargo, sob o seu reinado: Horst Köhler, um antigo Director-geral do FMI, saiu por ter explicado que o contingente da Bundeswehr no Afeganistão estava lá para proteger os interesses comerciais alemães; e Christian Wulff, da democracia-cristã e antigo chefe na Baixa Saxónia, saiu por causa de um empréstimo questionável para a sua casa que lhe concedido por um homem de negócios seu amigo. Dois dos ministros principais, um da Defesa, o outro da Educação, tiveram que abandonar o governo quando lhes foram retirados os seus graus de doutoramento – uma credencial importante para uma carreira política na República Federal – por plágio intelectual. Quando o último, Annette Schavan, uma íntima de Merkel (que expressou nela plena confiança), tentou , ainda, agarrar-se ao poder, o Bild-Zeitung sublinhou que ter como seu ministro da educação alguém que falsificou a sua investigação é equivalente a ter como ter como ministro das finanças alguém com uma conta secreta na Suíça.
Se mais cedo fosse dito, mais cedo seria visto! Em França, o ministro socialista para o orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, cujo processo era o de confirmar a sua honestidade em termos de impostos e em termos de capitais próprios, descobriu-se ter algures entre 600.000 € e € 15 milhões em depósitos ocultos na Suíça e em Singapura. Enquanto isso, Nicolas Sarkozy, é acusado por convergentes testemunhas de receber uns US $ 20 milhões de Kaddafi para a sua campanha eleitoral, a que o levou à Presidência. Christine Lagarde, que foi, sob a presidência Sarkozy, a responsável pela pasta das Finanças e que agora dirige o FMI, está sob interrogatório pelo seu papel no prémio de € 420 milhões em ‘compensação’ para Bernard Tapie, um bem conhecido bandido com um registo de prisão, ultimamente um amigo de Sarkozy. A situação de desagradável proximidade face ao crime é pois bipartidária. François Hollande, actual presidente da República, escondeu-se, para encontros com a sua amante no apartamento de uma “amiga” de um gangster Corso, morto durante um tiroteio na ilha no ano passado.
Na Grã-Bretanha, e quase que ao mesmo tempo, o ex-primeiro ministro Blair foi conselheiro de Rebekah Brooks, que corre risco de prisão por cinco acusações de conspiração criminosa (‘Keep strong and definitely sleeping pills. It will pass. Tough up’) e instando-a a ‘publicar um relatório ao estilo de Hutton’, como ele próprio tinha feito para limpar qualquer ideia de responsabilidade da sua administração na morte de um forte crítico da guerra no Iraque: uma invasão da qual se quis depois limpar – naturalmente, para a sua Faith Foundation – com um conjunto de astúcias e negócios à volta do mundo e nestes é de sublinhar o dinheiro pago por uma companhia petrolífera da Coreia do Sul, dirigida por um criminoso já condenado e com interesses no Iraque e na dinastia feudal do Kuwait. Que recompensa ele poderá ter ganho ainda mais a leste pelos profusos conselhos à ditadura Nasarbajev está ainda por se saber (‘Kazakhstan’s achievements are wonderful. However, Mr President, you outlined new heights in your message to the nation.’ Ad litteram). Em casa, por uma troca de favores, sobre a qual ele mentiu sem escrúpulos no Parlamento, as suas mãos foram untadas com £ 1 milhão para os cofres do partido, vindos do dono da F1, o magnata Bernie Ecclestone, actualmente sob acusação na Baviera por subornos no montante de € 33 milhões. Na cultura do New Labour, as figuras proeminentes no círculo de Blair, ministros de um dia – Byers, Hoon, Hewitt – podem eles próprios estar disponíveis para venda no próximo governo. Nestes mesmos anos, sem discriminação de partido, a Câmara dos Comuns foi exposta como sendo um antro em que se verificaram muitos desvios de dinheiro dos contribuintes.
Na Irlanda, enquanto isso, o líder do Fianna Fáil, Bertie Ahern, tendo canalizado mais de 400.000 € em inexplicáveis pagamentos antes de se tornar o chefe do governo,taioseach, votou ele próprio o salário mais alto de qualquer primeiro- ministro na Europa – €310.000, mesmo mais que o Presidente dos Estados Unidos – um ano antes de ter que abandonar o cargo por descrédito por toda esta sua desonestidade2.
Em Espanha, o primeiro-ministro, Mariano Rajoy, dirigindo um governo de direita, foi apanhado em flagrante no recebimento de luvas da construção e de outros negócios totalizando 250 mil euros em mais de uma década, que lhe foram passados por Luis Bárcenas. Tesoureiro do seu partido desde há vinte anos, Bárcenas está agora preso por acumular um tesouro de € 48 milhões em contas não declaradas na Suíça. Dos seus livros de contabilidade manuscritos, que detalhavam as suas transferências a Rajoy e a outros notáveis do Partido Popular – incluindo Rodrigo Rato, outro antigo-director geral do FMI – têm aparecido em fac-símile abundantes dados na imprensa espanhola. Uma vez que o escândalo se tornou conhecido, Rajoy mandou a Bárcenas uma mensagem em termos praticamente idênticos aos que Blair enviou a Brooks: “ Luis, eu entendo. Mantenha-se firme. Eu telefono-te amanhã. Um abraço.” Com uma insolente audácia face a este escândalo em que 85 por cento do público espanhol acredita que ele está a mentir, Rajoy está firmemente sentado no Palácio da Moncloa.
Na Grécia, Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente ministro do interior, da defesa e de desenvolvimento nos governos do Pasok, um delfim talhado para líder da social-democracia grega teve menos sorte: condenado no outono passado a vinte anos de prisão por uma carreira formidável de extorsões e de lavagem de dinheiro. Nas mesmas águas, Tayyip Erdoğan, desde há muito tempo aclamado pelos media da Europa pelo establishment intelectual como o maior estadista democrático da Turquia, cuja conduta terá virtualmente obtido o direito do país passar a ser considerado membro honorário da UE ante diem, tem mostrado que, na verdade, é digno de inclusão nas fileiras da União Europeia de uma outra forma: numa conversa gravada, instruía o seu filho a esconder dezenas de milhões em dinheiro, um outro levantamento como preço de um suborno feito à volta de um contrato de construção. Três ministros caíram após divulgações similares, antes de Erdoğan ter tempo de limpar a força policial e judiciária para poder estar seguro de que as coisas não iam mais longe. Depois de ter feito isso, a Comissão Europeia publicou o seu primeiro relatório oficial sobre a corrupção no seio da União, cuja dimensão o Comissário seu autor descreve como sendo a corrupção de tal dimensão que nos deixa estupefactos : numa estimativa baixa, custa à UE tanto quanto o todo o orçamento da União, alguns € 120 mil milhões por ano – na verdade sendo “provavelmente muito maior”. Prudentemente, o relatório cobriu somente os Estados-Membros. A própria UE3, toda a Comissão de memória recente a ficar assim protegida na opacidade, foi excluída.
Um lugar comum numa União que se apresenta como um tutor moral para o mundo, a poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude decorre do branqueamento da substância ou do envolvimento em democracia. As elites libertadas verdadeiramente da divisão acima, ou da significativa responsabilidade abaixo, pode enriquecer-se ela própria sem nenhuma distracção ou retribuição. A exposição pública deixa de importar muito, tanto quanto a impunidade se torna a regra. Tal como os banqueiros, os líderes políticos não vão parar à prisão. Da fauna acima, somente um idoso grego sofreu essa indignidade. Mas a corrupção não é apenas uma função do declínio da ordem política. É também, naturalmente, um sintoma do regime económico que tomou conta desta Europa desde a década de 1980. Num universo neoliberal, onde os mercados são o indicador do valor, o dinheiro torna-se, mais directamente do que nunca, a medida de todas as coisas. Se os hospitais, as escolas e as prisões podem ser privatizadas como empresas com fins lucrativos, porque não também os cargos políticos?
Para lá da precipitação cultural do neoliberalismo, contudo, encontra-se o seu impacto como um sistema socioeconómico – o terceiro e, na experiência popular, é a muito mais aguda de todas as maleitas que afligem a Europa. Que a crise económica desencadeada em todo o Ocidente em 2008 foi o resultado de décadas de desregulamentação financeira e da expansão do crédito, até mesmo os seus arquitectos o estar agora mais ou menos a admitir -ver Alan Greenspan. Interligados, através do Atlântico, os bancos europeus e as operações imobiliárias estavam tão profundamente envolvidas no descalabro como as suas contrapartes americanas. Na UE, no entanto, esta crise geral foi sobre determinada por uma outra característica, esta peculiar à União, as distorções criadas por uma moeda única imposta amplamente a diferentes economias nacionais, levando a que os países mais vulneráveis ficassem à beira da falência, uma vez que a crise global atingiu o seu máximo.
O remédio para isso? Por insistência de Berlim e de Bruxelas, não exactamente um regime clássico de estabilização do tipo Churchill-Brüning de entre as duas guerras, cortando nas despesas públicas, mas um pacto fiscal, definindo um limite uniforme de 3 por cento para todo e qualquer défice como uma disposição constitucional, efectivamente como a consagrar uma fixação dos olhos sobre uma parede como um princípio económico básico do Rechtsstaat, em pé de igualdade com a liberdade de expressão, igualdade perante a lei, habeas corpus, divisão de poderes e o resto. Não se fosse a sua participação em comportamentos sobre a tortura ontem, seria difícil encontrar um exemplo mais agudo sobre a consideração com que estes princípios são mantidos pelas oligarquias da UE hoje.
Economicamente, os ganhos resultantes da integração foram, desde o início, sobreavaliados e assim foram propagandeados. Na Primavera de 2008, a estimativa mais cuidadosa, feita por Andrea Boltho e Barry Eichengreen, dois economistas distintos e claramente defensores da perspectiva pró- União Europeia , concluíam que o mercado comum pode ter levado ao aumento do crescimento em 3 a 4% do PIB da CEE ao longo do período que vai desde meados da década de 1950 a meados da década de 1970, enquanto o Acto único europeu será responsável por apenas 1% de crescimento, enquanto o impacto positivo da União Monetária tinha até à data sido insignificante – tendo-se dado origem globalmente a um total no crescimento de apenas 5 por cento do PIB em mais de metade de um século. Isto antes do início da crise. Qual é o balanço desde então? Até ao final de 2013, cinco anos após o aparecimento da crise, o PIB da zona euro ainda não terá recuperado ao nível de 2007. Quase um quarto da sua juventude está desempregada. Na Espanha e na Grécia, os dados são uma verdadeira catástrofe: 57 e 58 por cento, respectivamente, estão no desemprego. Mesmo na Alemanha, que acumula excedentes comerciais, ano após ano e amplamente aplaudidos como sendo o resultado de uma história de sucesso da época, o investimento tem estado entre o mínimo nas economias do G7 e a proporção de trabalhadores de baixos salários (aqueles que ganham menos de dois terços do rendimento mediano) é a proporção mais alta de entre todos os países de qualquer Estado na Europa Ocidental. Estes são as leituras mais recentes sobre a União Monetária. Os charlatões da austeridade têm estado a sangrar o paciente, não a restituírem-lhe a saúde.
Neste cenário, um país é amplamente visto como o caso mais agudo de todos os casos de disfuncionamento na Europa. Desde a introdução da moeda única, a Itália apresentou o pior recorde económico de qualquer Estado-membro da União: vinte anos praticamente ininterruptos de estagnação com uma taxa de crescimento bem abaixo da verificada na Grécia ou em Espanha. A sua dívida pública é hoje de mais de 130 por cento do PIB. Ainda por cima não é um pequeno país nem sequer um país médio no conjunto dos países desde há pouco tempo considerados dserem a periferia da União. É um país membro fundador dos seis, com uma população comparável à da Grã-Bretanha e uma economia tão grande novamente como a de Espanha. Depois da Alemanha, a sua indústria transformadora é a segunda maior na Europa, onde é igualmente posicionada quanto á exportação de bens de capital. As suas emissões de dívida pública via Tesouro representam o terceiro maior mercado de títulos soberano no mundo. Quase metade da sua dívida pública é vendida no exterior: os dados similares do Japão estão abaixo dos 10 por cento. Combinando importância e fragilidade, a Itália é verdadeiramente o elo mais fraco na UE, um elo que teoricamente poderá quebrar.
(continua)
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