"O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…"
Fernando Pessoa
Há coisas que não enjeito e uma delas é comparar-me com os maiores. Tal como refere o poeta, Cristo nada sabia de finanças, eu também nada sei, e não constando que ele tivesse biblioteca, não posso afirmar que eu a tenha... mas cá vou fazendo as leituras possíveis... e quando entendo, reajo.
Reagindo ao hoje escrito pelo Bento, percebo que ele, douto em finanças e certamente possuidor de imensos livros, regressa agora à tristemente célebre estirada do viver-se acima das nossas possibilidades considerando, escreve ele, "a endémica e secular tendência na nossa sociedade para gastar mais do que produz, sobreendividando-se e descurando a criação de riqueza, reproduzindo ciclos de crescimento com dívida, crise e resgate, que desembocam em dependência externa e/ou regimes autoritários." e o extenso artigo termina com esta frase lapidar, como se inventasse a roda, "querer assentar o crescimento na procura interna é como acumular lenha à volta da casa."
Respondo, conforme posso:
Sobre o endividamento, recorro mais uma vez a Marx -"Os donos do capital incentivarão a classe trabalhadora a adquirir, cada vez mais, bens caros, casas e tecnologia, impulsionando-a cada vez mais ao caro endividamento, até que sua dívida se torne insuportável."
Sobre o crescimento, recorro a leituras, que nunca dispenso - "A inversão do actual rumo é justa e é possível. Mas colide com as imposições da União Europeia para quem Portugal está condenado a ser destino dos excedentes das grandes potências, e confronta-se também com os interesses do grande capital. Veja-se o papel dos grupos monopolistas da grande distribuição no esmagamento dos preços à produção ou na importação de mercadorias estrangeiras, o papel da banca privada na falta de financiamento às PME, o papel que o domínio monopolista sobre a energia, as comunicações ou os transportes teve no estrangulamento das potencialidades produtivas do País.
A defesa da produção nacional é uma questão estratégica para o presente e para o futuro. A valorização da da indústria, da agricultura e das pescas reclama uma política substancialmente diferente. Garantir a soberania alimentar, a soberania energética, a produção de bens e equipamentos de elevado valor acrescentado que diminuam as importações de mercadorias e potenciem e diversifiquem as nossas exportações requer uma outra política e um governo capaz de a concretizar. A batalha pela produção nacional, aí está, para ser travada pelos trabalhadores e pelo povo português.
conversavinagrada.blogspot.pt
OS SUBLINHADOS ESTÃO ABAIXO
Falsificação da história
Testemunhei os três resgates financeiros de Portugal durante a vigência do actual regime democrático. O primeiro, 1977-79, ainda na universidade; o segundo, 1983-85, como participante na execução do programa de ajustamento; e o mais recente, 2011-14, como cidadão interessado.
As três necessidades de resgate tiveram causas semelhantes - grandes défices na balança de transacções correntes com o exterior, tornando presumível a insustentabilidade da dívida externa com eles acumulada, deixando o país na iminência de bancarrota (falhar pagamentos e não ter recursos para importar produtos básicos). Apesar das diferentes "justificações" políticas circunstanciais, os três problemas repetiram uma origem comum: perda de competitividade da economia, demasiada despesa interna, devida sobretudo ao sector público (embora no episódio mais recente, uma parte dos excessos "apareçam" contabilisticamente no sector privado, para onde o Estado desorçamentou o seu registo, através das PPP), e má gestão da política económica.
A receita aplicada aos três casos também foi genericamente a mesma, embora com combinações e graus diferentes: forte contenção da despesa interna, a chamada austeridade, para eliminar o excesso, e reduções salariais, para reganhar competitividade. A grande diferença entre os dois primeiros casos e o mais recente foi que naqueles se dispunha do instrumento cambial e da política monetária, os quais permitiram cortes salariais muito mais profundos e generalizados a toda a economia, e muito mais fáceis de "vender" politicamente, sem que isso tivesse incomodado o Tribunal Constitucional, treinado para apreciar mais a forma do que a substância das cosias, ou alguém tivesse invocado os princípios da confiança ou da proporcionalidade. As desvalorizações permitiram que as exportações recuperassem mais depressa e em maior volume, com isso aliviando o contributo de ajustamento pedido à contenção da procura interna. E provocando uma redução efectiva dos preços do sector não transaccionável rebalanceou, mais rápida e equilibradamente, os preços relativos da economia. Sem esses instrumentos e com a envolvente externa de uma profunda crise da zona euro que conteve a procura externa, o último ajustamento teve de incidir mais na contenção da procura interna.
Por outro lado, nos dois primeiros casos, as instituições políticas e os "partidos do sistema" estiveram muito mais alinhados do que no último, apesar de os seus impactos sociais terem sido mais violentos, porque o país era mais pobre e a protecção estatal era mais frágil. No segundo resgate, o Tribunal Constitucional até validou um imposto retroactivo (apesar do n.º 3 do art.º 103.º da Constituição), certamente por reconhecer o estado de necessidade então vivido.
Vem isto a propósito da principal - e politicamente mais perigosa - diferença entre o resgate mais recente e os dois anteriores: a desconstrução da memória e a revisão da história. A necessidade dos resgates anteriores não é negada (tirando os contestatários do costume, nas margens do sistema democrático) nem os sacrifícios feitos para os superar são desconsiderados, assim como os agentes desses ajustamentos são justamente reconhecidos como "heróis" de um período difícil.
Já quanto ao resgate recente, tem vindo a ser construída e institucionalizada uma narrativa política de que desaparece o estado de pré-bancarrota em que o país se encontrava em meados de 2011, e que levou à necessidade do resgate, bem como a envolvente externa de crise generalizada, com a sobrevivência do euro em risco e o consequente estado de "cerrado nevoeiro" sobre o futuro imediato em que se viveram os primeiros anos do processo; e em que se pretende negar a necessidade do ajustamento efectuado, transformando-o num conjunto de maldades intencionalmente impostas à população por um grupo de malfeitores que acidentalmente ocupou o governo de então.
A óbvia falsidade e injustiça histórica dessa narrativa, que se insere na nova onda política das fake news, tem óbvios intuitos políticos imediatos, que não comento. Mas é muito perigosa porque, desvalorizando as causas da crise que obrigou ao duro ajustamento e desresponsabilizando os comportamentos sociais e políticos que as originaram, contribui para a sua fácil repetição e ajuda a perpetuar a endémica e secular tendência na nossa sociedade para gastar mais do que produz, sobreendividando-se e descurando a criação de riqueza, reproduzindo ciclos de crescimento com dívida, crise e resgate, que desembocam em dependência externa e/ou regimes autoritários.
Conviria por isso que as instituições do Estado - a começar pelo seu nível mais elevado - não permitissem que tal narrativa falsa se consolidasse. Pode discutir-se a composição do ajustamento e se a Europa foi um facilitador ou um complicador da solução, mas pôr em causa a necessidade do ajustamento pura e simplesmente não é sério. E conviria que a sociedade, em geral, percebesse que, com os níveis da dívida acumulada, a situação do país continua financeiramente periclitante e vulnerável à mudança da conjuntura. Pelo que, por exemplo, querer assentar o crescimento na procura interna é como acumular lenha à volta da casa.
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Marx em Maio, renascido: "Os donos do capital incentivarão a classe trabalhadora a adquirir, cada vez mais, bens caros, casas e tecnologia, impulsionando-a cada vez mais ao caro endividamento, até que sua dívida se torne insuportável." (1867)
[gostaria de poder citar partes da excelente conferência de hoje, de
Sérgio Ribeiro, mas não tenho (ainda) disponível o texto]
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A inversão do actual rumo é justa, é necessária, é possível
Produção nacional é estratégica para o país
No mar de informação de natureza económica que circula, por entre a verborreia das start-ups, dos clusters e do empreendedorismo, o papel da produção nacional como elemento estruturante de uma política económica tem estado, está, ausente nas decisões políticas. Na concepção de sucessivos governos, incluindo do actual governo minoritário do PS, a produção nacional é apenas a soma do efeito conjugado de diferentes empresas e da lógica de mercado, não é uma preocupação, não é um objectivo, não é um instrumento para garantir o desenvolvimento económico.
Ora, não há resposta aos problemas estruturais do País sem encarar de frente o seu défice produtivo. Portugal é um país deficitário porque produz menos do que aquilo de que necessita e importa mais do que aquilo que pode. As consequências do défice produtivo sentem-se de forma transversal. No endividamento público e externo, nos desequilíbrios e desigualdades do território, no desemprego estruturalmente elevado, no atraso (e também défice) científico e tecnológico, na distribuição da riqueza, nas contas públicas, na saída de capitais, na dependência externa e exposição do País à pressão e à chantagem por parte de credores/especuladores, bem como a outros factores externos num contexto de instabilidade decorrente da natureza e crise do capitalismo.
Não se chegou aqui acaso. O desprezo pelos sectores produtivos tem um percurso que emana do ventre da política de direita. Da destruição da Reforma Agrária às privatizações, do Mercado Comum à liberalização dos sectores estratégicos, da adesão ao euro às políticas ditas de controlo orçamental. O definhamento do aparelho produtivo nacional, ainda que de forma irregular, marcou as últimas décadas.
Inverter o rumo
Portugal tem um défice estrutural na sua balança comercial que apenas foi temporariamente superado durante o pacto de agressão, e não pelas melhores razões, mas porque a retracção do consumo interno e a quebra no investimento foi tão brutal que levou ao facto das exportações superarem as importações. A retoma de alguns indicadores económicos após o afastamento do governo PSD/CDS, decorrente das medidas de reposição de direitos e rendimentos, tiveram, dadas as fragilidades do aparelho produtivo nacional, o efeito de um novo aumento das importações induzido sobretudo pelo aumento do consumo interno e do investimento. E não se leia nestas palavras qualquer falsa dicotomia entre o aumento dos rendimentos e os equilíbrios externos, mas antes a necessidade de fazer também avançar uma política de Estado de substituição de importações por produção nacional.
A inversão do actual rumo é justa e é possível. Mas colide com as imposições da União Europeia para quem Portugal está condenado a ser destino dos excedentes das grandes potências, e confronta-se também com os interesses do grande capital. Veja-se o papel dos grupos monopolistas da grande distribuição no esmagamento dos preços à produção ou na importação de mercadorias estrangeiras, o papel da banca privada na falta de financiamento às PME, o papel que o domínio monopolista sobre a energia, as comunicações ou os transportes teve no estrangulamento das potencialidades produtivas do País.
A defesa da produção nacional é uma questão estratégica para o presente e para o futuro. A valorização da da indústria, da agricultura e das pescas reclama uma política substancialmente diferente. Garantir a soberania alimentar, a soberania energética, a produção de bens e equipamentos de elevado valor acrescentado que diminuam as importações de mercadorias e potenciem e diversifiquem as nossas exportações requer uma outra política e um governo capaz de a concretizar. A batalha pela produção nacional, aí está, para ser travada pelos trabalhadores e pelo povo português.
Vasco Cardoso
www.avante.pt